2.4.07

NOVO MINISTÉRIO DE LULA: MAQUIAVEL OU BRANCALEONE?

Rudá Ricci

Instituto Cultiva

  1. Quase três meses depois...

L´Armata Brancaleone

O Presidente Lula bateu um recorde republicano. Demorou quase três meses para anunciar seu novo ministério. Foram negociações difíceis, cujos lances principais revelaram um modo lulista de fazer política.

Dentre os ministérios de maior peso político e orçamentário, o novo grupo de auxiliares do Presidente da República ficou assim composto:

MINISTÉRIO

MINISTRO

PARTIDO

REGIÃO

Comunicação Social

Franklin Martins

Sem partido

Sudeste

Previdência Social

Luiz Marinho

PT

Sudeste

Justiça

Tarso Genro

PT

Sul

Turismo

Marta Suplicy

PT

Sudeste

Educação

Fernando Haddad

PT

Sudeste

Desenvolvimento Agrário

Guilherme Cassel

PT

Sul

Desenvolvimento Social

Patrus Ananias

PT

Sudeste

Secretaria Geral

Luis Dulci

PT

Sudeste

Casa Civil e Gerência do PAC

Dilma Rousseff

PT

Sul

Fazenda

Guido Mantega

PT

Sudeste

Comunicação

Hélio Costa

PMDB

Sudeste

Integração Nacional

Geddel Lima

PMDB

Nordeste

Agricultura

Reinhold Stephanes

PMDB

Sul

Minas e Energia

Silas Rondeau

PMDB

Norte

Saúde

José Temporão

PMDB

Sudeste

Transportes

Alfredo Nascimento

PR

Sul

Trabalho

Carlos Lupi

PDT

Sudeste

Desenvolvimento, indústria e Comércio

Miguel Jorge

Sem partido

Sudeste

Relações Institucionais

Walfrido Mares Guia

PTB

Sudeste

Cidades

Márcio Fortes

PP

Sudeste

A tabela acima revela uma divisão de poder importante. É perceptível a permanência do peso político das regiões sul e sudeste no comando das principais pastas. Nordeste ganha uma pasta relevante, cujo ministro é um expoente em ascensão: o peemedebista baiano Geddel Lima. Geddel entra pela porta da frente, como um dos artífices do desmonte do reinado de Antônio Carlos Magalhães. A aliança Geddel-Jacques Wagner vem sendo construída há anos, tendo como principal mediadora a ex-prefeita de Salvador, Lídice da Matta (ex-PCdoB e atualmente dirigente do PSB baiano). A Bahia, juntamente com Pernambuco, desbancam a até então emergente importância política do Ceará. A votação de Lula no segundo turno deve muito a esta aliança. Contudo, nordeste não é contemplado por nenhum outro ministério fundamental.

A tabela revela, ainda, que outros partidos aliados poderão ter algum peso em estatais e outras agências e cargos regionais. Mas no conjunto do ministério, não ganharam grande projeção. PTB é um exemplo claro, juntamente com PDT e PR. Walfrido Mares Guia é citado como da cota pessoal de Lula e ensaia trocar o seu atual partido pelo PSB. É o grande articulador político do bloco lulista em Minas Gerais, responsável pela administração do bloco lulécio (lideranças políticas que apóiam Aécio Neves e Lula e se destacaram nas últimas eleições). O PDT conquistou um ministério, com forte oposição de dirigentes sindicais, em especial, da CUT. Não terá vida fácil. Finalmente, o PR (ex-PL) ganhou o Ministério dos Transportes tendo à frente um ministro sob suspeição em toda imprensa nacional. Este é o estilo Lula de construir um ministério: constrói uma coalizão (termo adotado pelo Presidente quando da montagem do atual ministério) tendo grande parte dos ministros com pouca força ou garantia de permanência.

Este estilo não afetou apenas os partidos aliados, mas o próprio partido do Presidente. Foram várias situações constrangedoras que atingiram lideranças petistas. A começar pela queda constante da cotação de Marta Suplicy que parecia a natural opção para o Ministério das Cidades, sendo deslocada para o Ministério da Educação, Ministério da Previdência, mas terminando como ministra do turismo. O turismo gerou mais de 900 mil empregos nos últimos quatro anos no país e é possível que a nova ministra possa capitanear uma importante campanha contra o turismo sexual. Mas parece evidente que a queda da cotação foi divulgada quase diariamente aos grandes órgãos da imprensa brasileira, num lento e constante processo de corrosão.

Tarso Genro sofreu um pequeno revés, não em relação à sua nomeação, mas num breve atrito, não explorado pela imprensa, quando da divulgação da proposta de reforma política. Tarso apoiou a proposta da OAB, cujo principal autor foi o jurista Fábio Konder Comparato. Foi discretamente desautorizado por Lula, novamente se utilizando da tribuna da grande imprensa, ao afirmar que reforma política é tema de discussão com lideranças partidárias. A proposta de Comparato sugere a regulamentação do artigo 14 da Constituição Federal, aumentando o escopo dos plebiscitos e referendos. Também sugere a criação de um órgão central e independente de planejamento federal.

Guilherme Cassel enfrentou e enfrentará o desgaste do estilo Lula. Era ministro e continua ministro do desenvolvimento agrário. Contudo, Lula deixou correr uma disputa interna entre petistas. Assistiu a divisão entre petistas vinculados ao movimento sindical (Fetraf e CONTAG, além da ASBRAER e OCB) e aqueles vinculados à corrente Democracia Socialista (DS), à qual Cassel está associado. O nome indicado pelo primeiro grupo foi Walter Bianchinni, então secretário nacional de agricultura familiar, que acabou aceitando o convite de Roberto Requião e se tornou secretário da agricultura do Paraná. O terreno parecia aberto, mas acabou estimulando uma forte disputa interna na própria DS. Acabou vingando o nome de Cassel, que recebeu como primeiro presente uma censura pública do presidente da maior confederação sindical do país, a CONTAG.

Outro emblema do estilo Lula de montar ministério e governar é a condução em toda crise do sistema de transporte civil aéreo. O apagão aéreo, como está sendo jocosamente apelidado no Brasil, se arrasta em conflitos e múltiplas negociações desencontradas. Num artigo esclarecedor, o jornalista Kennedy Alencar (Sem querer, Lula quebra tabu militar, Folha Online, 01 de abril) revela os descaminhos desta crise. Afirma que todos chefes militares boicotaram os ministros da defesa, desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Na gestão Lula, denuncia, José Viegas foi derrubado por uma articulação militar. José Alencar assumiu a pasta e não conseguiu contornar a crise da Varig. Waldir Pires foi a opção da vez, apoiado por Lula desde então por ser a última liderança da esquerda dos anos 60. O boicote que vem sofrendo teria a mesma dimensão e potência da enfrentada por Viegas. Este teria sido o motivo para Lula desautorizar o comandante da Aeronáutica quando do recente motim de sargentos controladores dos vôos. Na prática, o ministro foi sobrepujado pela intervenção pessoal do próprio Presidente da República.

O estilo Lula de montar um ministério, ao contrário do que se pretende vazar para a imprensa, não é definido pelo diálogo constante. Antes, é um jogo de xadrez onde o candidato deve se viabilizar, sem alarde. Quem aparece excessivamente é excluído do jogo. Quem não se articula com agressividade também não ganha qualquer simpatia. Enfim, o candidato vai enfrentando obstáculos e acordos que não têm a garantia do Presidente e quando conquista seu objetivo, senta-se à cadeira de ministro com a oposição em seu encalço, organizada no mesmo processo que o fez ministro. A oposição, em outras palavras, é doméstica.

  1. Qual coalizão?

Vittorio Gassmann, no Incrível Exército de Brancaleone.

Lula insistiu na idéia de coalizão para desenhar a montagem de seu atual ministério. Afirmou, no dia 23 de março, que estava montando uma coalizão para durar vinte anos. O cientista político Sérgio Abranches já havia destacado a característica do presidencialismo tupiniquim utilizando o mesmo termo:

O raciocínio acima aponta para o nó górdio do presidencialismo de coalizão. É um sistema caracterizado pela instabilidade, de alto risco e cuja sustentação baseia-se, quase exclusivamente, no desempenho corrente do governo e na sua disposição de respeitar estritamente os pontos ideológicos ou programáticos considerados inegociáveis, os quais nem sempre são explícita e coerentemente fixados na fase de formação da coalizão.[1]

A coalizão, no caso, deveria seguir dois eixos: o partidário e o regional. Somente assim o governante conseguiria governabilidade. Com efeito, em análise recente elaborada pela equipe de conjuntura do Instituto Cultiva, constatou-se que 13 dos recém governadores eleitos em 2006 controlam mais de 50% das bancadas de parlamentares estaduais e federais de seu Estado. Região e partido se cruzam na montagem da governabilidade do governo federal.

Toda coalizão procura diminuir o campo de disputa política. Ela procura ser hegemônica. São definidas a partir de um programa ou projeto nacional. Este é um princípio, porque se opõe a um mero acordo que objetive a governabilidade do grupo eleito a partir da distribuição de cargos para outras forças partidárias que porventura tenham representatividade no parlamento.

Neste caso, a experiência recente da Itália é profícua. A coalizão atualmente no poder (L´Unione), citada frequentemente por ministros de Lula como um exemplo a ser seguido, envolve partidos do espectro de centro-esquerda[2]. A Unione foi fundada em 2005. Seu programa, intitulado Per il bene dell´Italia, possui 281 páginas e compreende vários capítulos e compromissos: o princípio laico republicano; administração pública de qualidade; justiça e cidadania; segurança; política internacional; nova economia e nova qualidade ambiental; justiça social e desenvolvimento sustentável; uma nova rede de infraestrutura e desenvolvimento; investimento na educação; pesquisa e capital humano; política de coesão e desenvolvimento regional; a Itália no mundo; riqueza da cultura; mais informação e liberdade. Este documento foi fruto de seminários e debates públicos e foi registrado em cartório como compromisso com o país.

Esta parece ser uma diferença fundamental em relação ao que Lula denomina de coalizão. Na montagem do ministério, não se discutiu um programa nacional, um compromisso público. Houve, é fato, um acordo tácito, que é o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Não por outro motivo, o ministro da educação elaborou um plano da área que foi apelidado de PAC da Educação. Será seguido, segundo informou o novo ministro do transporte, pelo PAC do Transporte. Há, contudo, uma diferença fundamental com o que se compreende como coalizão: não houve debate aberto, público, entre os partidos da coalizão a respeito de seu projeto para o Brasil. Não há compromisso público, portanto. Não temos, nós cidadãos, o que cobrar. O acordo foi, mais uma vez, por cima, pela cúpula e não sabemos se efetivamente se articulou a partir de um programa, seja o PAC ou qualquer outro.

  1. Compromissos políticos, novo ministério e sociedade civil

O exército se encontra com a procissão.

Uma coalizão sem debate público, sem compromisso público nacional, se limita ao juízo do seu maior líder, no caso, o Presidente da República. Os cidadãos não têm como interferir ou monitorar a coalizão, justamente porque não estão presentes ou não sabem do que se trata. A política continua distante do cotidiano.

Não por outro motivo, o mais recente balanço de conjuntura produzido pelo Grupo Projeto Brasil (que envolve várias forças políticas e partidárias que apóiam a Via Campesina), faz um diagnóstico desanimador sobre o futuro governo.

No documento divulgado em 16 de março, apresenta-se o seguinte diagnóstico:

a) O PAC não redefine a política governamental dos últimos anos e não possibilita o crescimento acelerado, pois a taxa de investimento sobre o PIB continuará sendo de 17%. Para um crescimento do PIB superior a 5%, a taxa de investimento teria que ser no mínimo de 25%;

b) O PAC prioriza o investimento em infraestrutura que objetiva melhoria da malha de exportação e subsídio ao consumo energético;

c) O documento condena o projeto de transposição do rio São Francisco, acusando-o de garantir apenas compromissos eleitorais;

d) a vitória eleitoral do ano passado não teria sido capaz de aumentar a influência dos setores organizados da população e não alteraram os rumos do governo em sua primeira versão;

e) Não há indício do governo federal se empenhar na participação popular para definição de suas políticas;

f) O segundo mandato, assim, se configura como centrista e pragmático, que prioriza sua própria governabilidade e reduz atritos com segmentos sociais dominantes.

Lula acertou quando disse, na posse dos últimos ministros nomeados para sua nova gestão, que "uma coalizão pressupõe uma reunião de pessoas que pensam diferente e juntas constroem um país melhor". Foi mais longe e disse que propositalmente preferiu chamar pessoas que o criticam para fazer parte de seu governo porque precisa de várias visões diferentes para fazer um bom trabalho. São suas palavras:

Companheiros, quando a gente vai construir uma coalizão, a gente não quer juntar os mesmos que nos apóiam, pois uma coalizão pressupõe estabelecer uma grandeza interior capaz de estar ao lado de pessoas que até ontem falavam mal de você, na disputa política. Muita gente me dizia: Lula, você está montando um governo com pessoas que faziam muita crítica. O Geddel fazia crítica, o Lupi, fazia crítica, não sei se o Miguel Jorge (ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior)fazia crítica a mim. Se fazia, não era pela frente.

Com efeito, um governo de coalizão se faz com espírito de estadista, sem mágoas ou visão pessoal. Faz-se a partir da construção uma alternativa nacional, forte, representativa, hegemônica.

O problema é que um projeto nacional, forte, representativo e hegemônico não se constrói apenas com partidos e ministérios. São as lideranças sociais que legitimam e articulam o gerenciamento de políticas públicas com a energia moral e a identidade do país. Maquiavel já havia dito que a Corte é apenas um espaço por onde o fel é destilado e as disputas são freqüentes. O Príncipe não deve tantos deveres à Corte. Mas deve, sempre, aos cidadãos.



[1] ABRANCHES, Sérgio. “O presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”.In: Dados, 31 (1), 1988. Fernando Limongi sugere uma situação inversa, em que o parlamentar é obrigado a aderir ao governo federal, quase sem críticas, ou aguardar a eleição do próximo Presidente, na esperança que seja de seu bloco político. Ver LIMONGI, Fernando. “A democracia no Brasil: presidencialismo, coalizão partidária e processo decisório“. In: Novos Estudos CEBRAP, 76, novembro de 2006.

[2] Os partidos fundadores da coalizão foram: Democratici di Sinistra (DS, principal partido da esquerda italiana); La Margherita (partido político de centro, oriundo da ala católica mais à esquerda, liberais democráticos e social-democratas; segundo maior partido da coalizão); Partito della Rifondazione Comunista (eurocomunista); Socialisti Democratici Italiani (tradicional partido socialista e reformista da Itália); Federazione dei Verdi (movimento ambientalista, considerado esquerda radical); Popolari-UDEUR (partido de centro, cristão-democrático); Partito dei Comunisti Italiani (eurocomunista, de origem marxista); Itália dei Valori; Movimento Repubblicani Europei (laico republicano).