10.4.07

Os Conceitos de Esquerda e Direita na Atualidade

Por RUDÁ RICCI

Tínhamos, até os anos 1980, uma sumária definição de esquerda, a partir da teorização de Marx e seguidores. Ser de esquerda era lutar pela igualdade social, com a passagem pelo socialismo centralizador, tendo em vista a construção do comunismo - um projeto muito próximo da proposta anarquista.Em função do etapismo da proposta de Marx (passagem pelo socialismo, a ditadura do proletariado), o desenvolvimento das forças produtivas (os meios de produção, a tecnologia produtiva) era um foco político importante. Com o desenvolvimento das forças produtivas, as contradições inerentes ao capitalismo ficariam cada vez mais desnudadas, aumentando as tensões entre classes, facilitando o trabalho educativo pelo socialismo. O desenvolvimento das forças produtivas também auxiliaria na construção do socialismo e na sua superação mais acelerada para o comunismo. Lembremos que no Manifesto do Partido Comunista, elaborado por Marx em 1848, uma encomenda da Associação Internacional do Trabalho (AIT, liderada por socialistas e anarquistas, muitos deles sindicalistas), Marx sugeriu que o comunismo seria um estágio em que ninguém teria necessidade de trabalhar, já que toda a produção seria automatizada. Assim, segundo Marx, para chegar à automatização da produção seria necessário desenvolver a tecnologia de produção e colocá-la sobre o controle dos homens - e não da classe dominante e empresarial. Do ponto de vista intelectual, Marx deu uma volta gigantesca. Sustentou que era necessário passar pela ditadura para chegar ao anarquismo. Uma contradição que os anarquistas nunca perdoaram. Pois bem. Hoje, essa estratégia teórica, mental e política não se aplica com a mesma facilidade. As classes sociais, o Estado, a dinâmica social, a formação de opinião, a disputa globalizada, a descrença no coletivo, o desespero e angústias individuais apontam para uma mudança radical. Neste artigo, minha proposição é fazer uma breve provocação do que seria, então, ser esquerda nos dias atuais. Ser de esquerda, hoje, significa aderir à defesa da democracia participativa, do desenvolvimento sustentável, da solidariedade e promoção humana, do controle social e do internacionalismo. Ser de direita é exatamente o inverso: conivência com a centralização de poder, apartamento entre governantes e dirigentes e entre governados e dirigidos, progresso com lucros imediatos, competição de mercado influenciando as relações humanas, estrutura de gestão de tipo imperial (centralizada no topo da hierarquia funcional), proteção (não promoção) humana e nacionalismo-xenofobia (baseado nas noções de superioridade e inferioridade no interior da espécie humana). Escopos da Esquerda na AtualidadeA democracia participativa é a crença no coletivo e na espécie humana. Essa defesa da espécie como marca da igualdade formal entre os homens está em Marx, novamente no Manifesto do Partido Comunista e nos Grundrisse (rascunhos da maior obra de Marx, O Capital). Trata-se, portanto, de uma atualização, e não uma novidade. É o inverso da postura de direita, que aposta na diferença individual. Significa um modo de gerir que é absolutamente público e generoso, fundado na negação da diferença entre raças (porque aposta na igualdade da espécie humana). Está totalmente voltado para a defesa da participação direta do cidadão na gestão pública (e não apenas aquela em que o eleitor elege um representante, o mais competente entre todos), postula que toda humanidade tem inteligência e, portanto, capacidade para governar. As condições sociais e trajetória de vida podem inibir, sim, essa possibilidade de co-gestão. Mas aí, se todos, homens e mulheres, nascem com a mesma inteligência potencial, basta um projeto educacional coerente e objetivo para possibilitar um salto sobre o déficit de aprendizagem de cada pessoa. Não se trata de condicionar, mas de revelar para cada um seu potencial político. Daí decorre a necessidade de desenvolver uma metodologia adequada e coerente, que desde o início respeite a inteligência potencial, a experiência de cada um, além da promoção da construção de um projeto coletivo de sociedade. Nessa trajetória, a socialização das informações é fundamental. Sobre a defesa do desenvolvimento sustentável, é bom lembrar que este conceito se articula com o de democracia participativa e com o conceito de condições de reprodução das condições de trabalho. Não se trata de um amor indistinto pela natureza, como sugerem alguns ambientalistas extremados. A espécie humana continua como referência política. Ocorre que se o homem continuar a degradar a natureza em seu próprio benefício, as condições atuais de vida estarão extintas em poucos anos. Água doce não será mais suficiente para todos em 20 ou 30 anos, segundo estudos recentes. Teremos que aprender a renová-la ou a conter o uso indiscriminado e pouco inteligente.O conceito de desenvolvimento sustentável é oposto ao de progresso, de linha reta para um determinado padrão - normalmente, o padrão europeu ou norte-americano é o utilizado para explicar o que é progresso. Parte do princípio que os homens possuem cultura específica, experiências próprias e que o desenvolvimento precisa respeitar tais peculiaridades. O desenvolvimento, por sua vez, é entendido como integral - pessoal, humano, espiritual, social, econômico, produtivo, tecnológico.Solidariedade e promoção humana apontam para a necessidade de trabalhar no coletivo e pela espécie. É o contrário do individualismo. A noção de promoção é oposta à de proteção. Na proteção (em políticas públicas), a ação do Estado se limita a garantir a sobrevivência da pessoa. É uma noção liberal, que foi esboçada na virada do século XVII para XVIII. Explicando: os liberais acreditavam que os homens são diferentes e que os mais capazes sempre terão uma vida privilegiada. Nessa perspectiva, o papel do Estado seria apenas o de garantir condições para que todos possam competir entre si (garantir saúde, educação e segurança). O restante estaria por conta de cada um, da competição. É daí que nasce a noção de proteção, ou seja, de apenas garantir a sobrevivência individual, mas não a melhoria de vida. A melhoria de vida seria resultado de uma ação exclusivamente individual. O conceito de promoção que partilhamos é outro. Significa acreditar que ninguém é capaz de se desenvolver por si só e que as condições do passado sempre limitarão o crescimento individual. Assim, uma pessoa, filho de favelados e que é favelado, sempre terá menos chances do que aquele que nasceu em berço abastado e que aprende a ler, tem uma biblioteca à sua disposição (além do cargo de direção garantido na empresa dos pais). O papel do Estado seria de promover (promoção) continuamente a possibilidade humana, tanto para os mais pobres como para os mais ricos. Ninguém pode ter seu potencial limitado. Em outras palavras, o Estado deveria promover, sem limites, o acesso a obras de arte, cursos de pintura, literatura, teatro, tecnologias de ponta, financiamento público para abertura de negócios, educação de ponta, intercâmbio etc. Não há limite ao crescimento da humanidade e o Estado seria um suporte para tal condição. O controle social é mais que fiscalização. Internacionalmente, significa capacidade de elaborar, gerenciar, monitorar e re-planejar ações e projetos públicos. Apóia-se na noção de construção da autonomia política dos cidadãos. É, portanto, o inverso do assistencialismo, em que os beneficiários dependem eternamente do benefício e daquele que o confere. Novamente, caímos na demanda de uma ação educativa, pedagógica. Trata-se de desenvolver saberes técnicos e socializá-los o mais amplamente possível. Finalmente, o internacionalismo. É um conceito coerente com o respeito à espécie humana. O inverso do nacionalismo. Ser nacionalista é defender a diferença abstrata entre os homens. A nação é sempre uma abstração. Raramente é uma escolha coletiva - ocorreu, por exemplo, na criação do Estado de Israel, nas revoluções de libertação na África ou nos movimentos separatistas contemporâneos, como é o caso da ex-Iugoslávia. Nesses casos, a criação de uma nação, como regra, se deu na disputa entre grupos que desejavam governar um território. O internacionalismo revela a crença no mundo sem fronteiras. Na troca de experiências. Na oposição ao racismo e à xenofobia. A compreensão desses conceitos é fundamental para a garantia e a soberania de projetos que se geram e se consolidam a partir da convicção de que é possível construir um mundo melhor, preservando o que de melhor ainda temos.Esta é a crença e o guia de todo projeto de esquerda, desde a sua identificação como tal, ao longo da Revolução Francesa. A crença no potencial ilimitado do ser humano, na capacidade de conviver com os membros de sua espécie e na construção permanente de projetos coletivos, em que maioria e minoria se respeitam.

Rudá Ricci - Doutor em Ciências Sociais e coordenador do Instituto Cultiva