História de duas cidades
Roberto Pompeu de Toledo/Veja - 17/2/1999
Santos (SP) e Sinop (MT) ilustram quanto o Brasil andou, de leste a oeste, dos anos 1500 a quase 2000
Na semana passada jogaram, pela Copa do Brasil de futebol, Santos e Sinop. O Sinop Futebol Clube representa a cidade mato-grossense do mesmo nome, 500 quilômetros ao norte de Cuiabá, já nos limites da Amazônia. O contraste entre os contendores era grande. O Santos é o time de Pelé, de muitas glórias. O Sinop, uma agremiação quase amadora. Mas não é desse contraste que se vai falar aqui, mas de outro — o das cidades de onde se originam os dois times, e que lhes emprestam o nome. Santos, fundada em 1543, é uma das cidades mais velhas do Brasil. Sinop, de 1974, é das mais novas. Santos surgiu quando os portugueses começavam a explorar as beiradas, e não mais que as beiradas, das terras recém-descobertas. Sinop inscreve-se no capítulo da marcha para o oeste das últimas décadas.
As duas cidades estão separadas no tempo por 431 anos e, no espaço, por cerca de 2000 quilômetros, em linha reta. Sinop é sigla de Sociedade Imobiliária do Noroeste do Paraná. Essa empresa, fundada pelo paulista de ascendência italiana Ênio Pipino, especializou-se em adquirir vastas áreas, loteá-las em fazendas e sítios e, no meio, plantar um centro urbano. No Paraná, onde iniciou suas atividades, criou, a partir da década de 50, as cidades de Formosa do Oeste, Jesuítas, Terra Rica e Iporã, entre outras. Em Mato Grosso, plantou Sinop, Santa Carmem, Vera e Cláudia. Em suma, a Sociedade Imobiliária do Noroeste do Paraná especializou-se em fazer surgir do nada, ou de certos nadas que identificava no mapa do Brasil, ambientes propícios à formação de aglomerações humanas.
Nesse ponto, a aventura que levou à criação de Sinop identifica-se à que levou à criação de Santos. Que outra coisa foi, desde sempre, a fundação das cidades do que fazer surgir do nada ambientes propícios aos ajuntamentos humanos? Se a natureza do empreendimento é a mesma, as motivações são semelhantes. Nelas se misturam ambição e generosidade, o prazer da aventura e a busca de lucro. Santos, fundada pelo português Brás Cubas (não confundir com o homônimo personagem de Machado de Assis), teve como marco inicial um hospital por ele implantado, a Casa de Misericórdia de Todos os Santos. Brás Cubas era, segundo o historiador Rocha Pombo, "colono de certo prestígio e de muita piedade e grande esforço". Ênio Pipino, o fundador da Sociedade Imobiliária do Noroeste do Paraná e, portanto, de Sinop, muito se orgulhava da condição de plantador de cidades. Segundo assessores citados numa reportagem publicada em VEJA por ocasião da fundação de Sinop, em setembro de 1974, ele trabalhava em boa medida "por idealismo, disposto a inscrever seu nome na história da ocupação do país".
O nome das duas cidades revela o espírito das respectivas épocas de fundação. Santos é nome de inspiração religiosa. Sinop, sigla de uma sociedade comercial. Outra diferença característica das respectivas épocas é que Sinop surge do ato deliberado de fundar uma cidade. É fruto de uma clara decisão, mesmo caso de Goiânia, Brasília e de muitas outras cidades recentes do Oeste e do Norte do Brasil. Santos é da época em que se instalava um hospital, escola, porto ou forte e, dali, prosperava ou não um núcleo urbano. Sinop é da era do planejamento. Santos, da dos acidentes fortuitos. Uma, bem ou mal, se alicerça na previsão e na ciência. Outra, no acaso e na fé.
Olha-se para Sinop e Santos, reunidas pelos azares da tabela de um campeonato de futebol, e tem-se a medida de quanto o Brasil andou, no espaço e no tempo. Compara-se uma cidade a outra, no entanto, e conclui-se que Sinop, embora contemporânea nossa, causa mais estranheza do que Santos. A estranheza vem da percepção de que as cidades, essas instituições em geral tão antigas que até parecem ter sempre estado aí, como os rios e as montanhas, ainda hoje brotam do solo. Se é estranho para um brasileiro, imagine-se para um europeu, cujas cidades deitam suas raízes muito mais para trás. O francês Lévi-Strauss contou, no livro Tristes Trópicos, o espanto que lhe causou visitar, na década de 30, os canteiros de obras de onde surgiriam Londrina, Rolândia, Arapongas e outras cidades do norte do Paraná. "A cada 15 quilômetros (da estrada de ferro), mais ou menos", escreveu, "instalava-se uma estação, à margem de uma derrubada de 1 quilômetro quadrado, que se tornaria uma cidade."
No Brasil ainda se fazem cidades, e está aí Sinop, com esse nome feio e absurdo, para prová-lo. Em poucos países, talvez nenhum, ainda se fazem tantas cidades. E, ainda por cima, elas logo se enchem de gente. Palmas, capital do Tocantins, surgiu há dez anos e já tem 140.000 habitantes. Sinop tem mais de 50.000. Isso é bom? É ruim? Pode simbolizar o dinamismo do país, sua coragem e determinação de preencher os claros de seu mapa, mas pode querer dizer também que aqui está sempre sobrando gente — gente expulsa, deserdada, insatisfeita, disposta sempre a partir para outra. O leitor faça sua opção.
Santos (SP) e Sinop (MT) ilustram quanto o Brasil andou, de leste a oeste, dos anos 1500 a quase 2000
Na semana passada jogaram, pela Copa do Brasil de futebol, Santos e Sinop. O Sinop Futebol Clube representa a cidade mato-grossense do mesmo nome, 500 quilômetros ao norte de Cuiabá, já nos limites da Amazônia. O contraste entre os contendores era grande. O Santos é o time de Pelé, de muitas glórias. O Sinop, uma agremiação quase amadora. Mas não é desse contraste que se vai falar aqui, mas de outro — o das cidades de onde se originam os dois times, e que lhes emprestam o nome. Santos, fundada em 1543, é uma das cidades mais velhas do Brasil. Sinop, de 1974, é das mais novas. Santos surgiu quando os portugueses começavam a explorar as beiradas, e não mais que as beiradas, das terras recém-descobertas. Sinop inscreve-se no capítulo da marcha para o oeste das últimas décadas.
As duas cidades estão separadas no tempo por 431 anos e, no espaço, por cerca de 2000 quilômetros, em linha reta. Sinop é sigla de Sociedade Imobiliária do Noroeste do Paraná. Essa empresa, fundada pelo paulista de ascendência italiana Ênio Pipino, especializou-se em adquirir vastas áreas, loteá-las em fazendas e sítios e, no meio, plantar um centro urbano. No Paraná, onde iniciou suas atividades, criou, a partir da década de 50, as cidades de Formosa do Oeste, Jesuítas, Terra Rica e Iporã, entre outras. Em Mato Grosso, plantou Sinop, Santa Carmem, Vera e Cláudia. Em suma, a Sociedade Imobiliária do Noroeste do Paraná especializou-se em fazer surgir do nada, ou de certos nadas que identificava no mapa do Brasil, ambientes propícios à formação de aglomerações humanas.
Nesse ponto, a aventura que levou à criação de Sinop identifica-se à que levou à criação de Santos. Que outra coisa foi, desde sempre, a fundação das cidades do que fazer surgir do nada ambientes propícios aos ajuntamentos humanos? Se a natureza do empreendimento é a mesma, as motivações são semelhantes. Nelas se misturam ambição e generosidade, o prazer da aventura e a busca de lucro. Santos, fundada pelo português Brás Cubas (não confundir com o homônimo personagem de Machado de Assis), teve como marco inicial um hospital por ele implantado, a Casa de Misericórdia de Todos os Santos. Brás Cubas era, segundo o historiador Rocha Pombo, "colono de certo prestígio e de muita piedade e grande esforço". Ênio Pipino, o fundador da Sociedade Imobiliária do Noroeste do Paraná e, portanto, de Sinop, muito se orgulhava da condição de plantador de cidades. Segundo assessores citados numa reportagem publicada em VEJA por ocasião da fundação de Sinop, em setembro de 1974, ele trabalhava em boa medida "por idealismo, disposto a inscrever seu nome na história da ocupação do país".
O nome das duas cidades revela o espírito das respectivas épocas de fundação. Santos é nome de inspiração religiosa. Sinop, sigla de uma sociedade comercial. Outra diferença característica das respectivas épocas é que Sinop surge do ato deliberado de fundar uma cidade. É fruto de uma clara decisão, mesmo caso de Goiânia, Brasília e de muitas outras cidades recentes do Oeste e do Norte do Brasil. Santos é da época em que se instalava um hospital, escola, porto ou forte e, dali, prosperava ou não um núcleo urbano. Sinop é da era do planejamento. Santos, da dos acidentes fortuitos. Uma, bem ou mal, se alicerça na previsão e na ciência. Outra, no acaso e na fé.
Olha-se para Sinop e Santos, reunidas pelos azares da tabela de um campeonato de futebol, e tem-se a medida de quanto o Brasil andou, no espaço e no tempo. Compara-se uma cidade a outra, no entanto, e conclui-se que Sinop, embora contemporânea nossa, causa mais estranheza do que Santos. A estranheza vem da percepção de que as cidades, essas instituições em geral tão antigas que até parecem ter sempre estado aí, como os rios e as montanhas, ainda hoje brotam do solo. Se é estranho para um brasileiro, imagine-se para um europeu, cujas cidades deitam suas raízes muito mais para trás. O francês Lévi-Strauss contou, no livro Tristes Trópicos, o espanto que lhe causou visitar, na década de 30, os canteiros de obras de onde surgiriam Londrina, Rolândia, Arapongas e outras cidades do norte do Paraná. "A cada 15 quilômetros (da estrada de ferro), mais ou menos", escreveu, "instalava-se uma estação, à margem de uma derrubada de 1 quilômetro quadrado, que se tornaria uma cidade."
No Brasil ainda se fazem cidades, e está aí Sinop, com esse nome feio e absurdo, para prová-lo. Em poucos países, talvez nenhum, ainda se fazem tantas cidades. E, ainda por cima, elas logo se enchem de gente. Palmas, capital do Tocantins, surgiu há dez anos e já tem 140.000 habitantes. Sinop tem mais de 50.000. Isso é bom? É ruim? Pode simbolizar o dinamismo do país, sua coragem e determinação de preencher os claros de seu mapa, mas pode querer dizer também que aqui está sempre sobrando gente — gente expulsa, deserdada, insatisfeita, disposta sempre a partir para outra. O leitor faça sua opção.
posted by Editor at 17:31
<< Home