Um copo d'água, por Edmundo Pacheco
Edmundo Pacheco (*)
- Letice, me traz um copo d' água!
A voz rouca e decidida, mas incoerentemente titubeante do "doutor Edney", soava pelos corredores estreitos da sobreloja da esquina da Avenida Herval com a Neo Martins. Corria o ano da graça de nosso senhor Jesus Cristo de um mil novecentos e oitenta e sete quando, numa tarde ensolarada de primavera, entrei pela primeira vez naquele prédio. A princípio me pareceu estranho. Frio. Com pessoas demais, em espaços muito apertados e, absurdamente, impessoais. Acostumado ao som e à movimentação das redações, não tive a melhor das impressões, mas, precisando do trabalho, me obriguei a ir em frente.
Recém-saído da Folha de Londrina, e com a intenção de voltar a fixar residência em Maringá, aceitei o cargo de "assessor de imprensa da Associação Comercial e Industrial de Maringá- Acim". O nome pomposo do cargo a princípio me animou. Era minha primeira experiência em assessoria de imprensa e, logo de cara, como "assessor de imprensa da Associação Comercial e Industrial de Maringá- Acim"!
Mal sabia que, tirando o pomposo nome, não havia mais nada. O que primeiro me preocupou foi o horário que o tal "doutor Edney" me comunicou, entre um copo d'água e outro:
- Das 17 às 18 horas! (?)
No primeiro dia de trabalho descobri que não tinha uma sala, nem mesa, nem cadeira, nem máquina de escrever. Nada! Prá não ter que "trabalhar" de pé no corredor, o "doutor Edney" colocou-me na sala de reuniões da diretoria. A tal sala, no final do corredor, tinha mais ou menos uns 40 metros quadrados, uma mesa de uns 20m2, umas 20 cadeiras e um sofá e um telefone. Só.
Cumprindo aquele horário de trabalho maluco, sozinho naquela salona atulhada, eu me sentia como se tivesse sido colocado de castigo. E foi assim que, apertado entre a mobília e manuscrevendo raros releases, que depois eram datilografados, onde (e quando) houvesse uma máquina de escrever disponível, nasceu a assessoria de imprensa da Acim.
Depois de uns 6 meses, já devidamente instalado no cargo (só no cargo) e cansado de passar a "hora de trabalho" sentado na "salona", olhando para as paredes brancas, tive a idéia de transformar o antigo "boletim informativo da Acim", um folheto que era fotocopiado (ou era mimeografado?) e distribuído aos associados, numa publicação. Uma revista, sonhei, mais interessado em criar uma função, ter uma utilidade que me permitisse fixar no cargo.
Levei a idéia ao "doutor Edney". Ele era o gerente da Acim. Sentado em sua mesa (ele sim tinha uma!) ele me olhou de cima a baixo, por trás dos grossos óculos, pensou um pouco e, depois de alguns segundos gritou:
- Letice, me traz um copo d'água!
Acostumada à secura da garganta do chefe, a velha senhora do cafezinho, de traços nitidamente nordestinos, não demorou a atender o pedido. Mas para mim, incomodamente sentado à frente do "doutor Edney", aqueles segundos demoraram séculos. Por fim, depois de molhar a garganta, ele prometeu levar a idéia à reunião da diretoria. Uma vitória!
Para viabilizar os projetos (o meu e o da revista) comprometi-me com o presidente Fernando Henriques (é, é assim mesmo com s. E não, não é o Cardoso. Esse era dono de uma rede da supermercados "Pratas", que acho que não existe mais) que mandaria a tal revista pronta, apenas para a gráfica fotolitar e imprimir. Fui feliz e infeliz na idéia.
Feliz porque consegui, finalmente, um trabalho que justificava meu emprego: conquistei sala, mesa, cadeira, máquina de escrever e máquina fotográfica. Desenhei laudas pra emoldurar os releases. Idealizei a Revista da Acim com logotipos, vinhetas, colunas, capas e tudo o que foi necessário. Criei o "Concurso Acim de Jornalismo", pra ajudar a divulgar a entidade.
Consegui, com tudo isso, ir ampliando o horário de trabalho, pra duas, três, quatro, até que, depois de 3 anos, trabalhava 8 horas por dia e às vezes (períodos de fechamento da revista) fazia hora-extra! Imagine, pra quem começou cumprindo castigo por uma hora.
Mas fui igualmente infeliz. Acabei criando um monstro. Minha idéia era, depois de estruturar a assessoria e a revista, contratar pessoal e formar núcleos de trabalho. Mas apesar do sucesso da publicação, faltou um departamento comercial que viabilizasse economicamente o projeto. Como eu era o chefe de redação, o pauteiro, o repórter, o fotógrafo, o editor, o digitador, o paginador, o revisor e o arte-finalista, além de assessor da Acim, coordenador do prêmio Acim etc. etc. faltava-me tempo pra vender (função, aliás, na qual nunca me dei bem).
Por fim, o "doutor Edney" foi tomar água noutra bica (a última vez que encontrei o Edney, Edney Francisco Ferreira, ele era professor da UEM. Será que ainda está por lá? Saudades de você companheiro), mudaram os diretores, a Acim passou por um processo de reformulação que resultou na modernização do SPC e de toda a estrutura da entidade e eu fechei o ciclo: instalado em sala própria, com arquivos e mesas, atulhado de papéis e funções mal-resolvidas, editando uma revista deficitária e feita de forma precária, voltei a sentir o vazio dos primeiros dias de trabalho.
Um dia, o Carlos Previdelli (irmão do ex-vice-reitor da UEM, o José) que ocupava um cargo de diretor da Acim, me chamou para uma conversa. Queria saber por que eu estava desmotivado e anunciou que faria modificações em meu setor. Era a senha. Levantei-me da cadeira, fui até a porta e fiz o que nunca fizera, gritei:
- Dona Letice, me traz um copo d'água!
E, antes mesmo que ela atendesse o pedido, que nunca antes tivera a coragem de fazer, voltei-me ao Previdelli e pedi demissão. Não sei se a dona Letice (ou seria Letícia?) me trouxe a água ou não. Creio que ela esteja aposentada (se ainda estiver viva) e até hoje não deve ter entendido o episódio. Mas não tem importância. Aquela água tinha mais a ver com a minha necessidade de auto-afirmação, que de matar a sede. Pra quem começou sem ter nem cadeira pra sentar, foi a bandeira fincada no topo da minha montanha.
Saí de cabeça erguida, mais uma vez feliz e infeliz. Feliz pela sensação do dever cumprido. E infeliz por abandonar um dos mais interessantes projetos em que me meti nesses anos todos. Ficou a saudade dos amigos da Acim e o orgulho que ver a "minha" Revista Acim chegando à maioridade, com prestígio e credibilidade. E ainda hoje, nos momentos de indecisão ou dificuldade, me lembro do Edney e sinto vontade de gritar:
- Dona Letice, me traz um copo d'água!
(*) Escritor por devoção, 46 anos, poeta por impulso, jornalista por profissão há 28 anos. Pai da Édile e do Dilee, marido da Sueli, avô da Julia. Três ou quatro livros escritos, nenhum publicado (procura editora, séria, desesperadamente). Perfil? Bom, já foi bóia-fria, catador de batatas, lavador de banheiros, pasteleiro, feirante, churrasqueiro de restaurante beira de estrada, pacoteiro, vendedor de tecidos, derrissador de café, repórter de impresso, pauteiro de TV, assessor de imprensa, revisor, diagramador, editor de texto de TV, funcionário público estadual e municipal, dono de lanchonete, confeccionista, balconista, corretor de imóveis, editor-chefe de telejornal, entre outros... Atualmente vende sanduíche natural na praia de Inajá, onde mora.
- Letice, me traz um copo d' água!
A voz rouca e decidida, mas incoerentemente titubeante do "doutor Edney", soava pelos corredores estreitos da sobreloja da esquina da Avenida Herval com a Neo Martins. Corria o ano da graça de nosso senhor Jesus Cristo de um mil novecentos e oitenta e sete quando, numa tarde ensolarada de primavera, entrei pela primeira vez naquele prédio. A princípio me pareceu estranho. Frio. Com pessoas demais, em espaços muito apertados e, absurdamente, impessoais. Acostumado ao som e à movimentação das redações, não tive a melhor das impressões, mas, precisando do trabalho, me obriguei a ir em frente.
Recém-saído da Folha de Londrina, e com a intenção de voltar a fixar residência em Maringá, aceitei o cargo de "assessor de imprensa da Associação Comercial e Industrial de Maringá- Acim". O nome pomposo do cargo a princípio me animou. Era minha primeira experiência em assessoria de imprensa e, logo de cara, como "assessor de imprensa da Associação Comercial e Industrial de Maringá- Acim"!
Mal sabia que, tirando o pomposo nome, não havia mais nada. O que primeiro me preocupou foi o horário que o tal "doutor Edney" me comunicou, entre um copo d'água e outro:
- Das 17 às 18 horas! (?)
No primeiro dia de trabalho descobri que não tinha uma sala, nem mesa, nem cadeira, nem máquina de escrever. Nada! Prá não ter que "trabalhar" de pé no corredor, o "doutor Edney" colocou-me na sala de reuniões da diretoria. A tal sala, no final do corredor, tinha mais ou menos uns 40 metros quadrados, uma mesa de uns 20m2, umas 20 cadeiras e um sofá e um telefone. Só.
Cumprindo aquele horário de trabalho maluco, sozinho naquela salona atulhada, eu me sentia como se tivesse sido colocado de castigo. E foi assim que, apertado entre a mobília e manuscrevendo raros releases, que depois eram datilografados, onde (e quando) houvesse uma máquina de escrever disponível, nasceu a assessoria de imprensa da Acim.
Depois de uns 6 meses, já devidamente instalado no cargo (só no cargo) e cansado de passar a "hora de trabalho" sentado na "salona", olhando para as paredes brancas, tive a idéia de transformar o antigo "boletim informativo da Acim", um folheto que era fotocopiado (ou era mimeografado?) e distribuído aos associados, numa publicação. Uma revista, sonhei, mais interessado em criar uma função, ter uma utilidade que me permitisse fixar no cargo.
Levei a idéia ao "doutor Edney". Ele era o gerente da Acim. Sentado em sua mesa (ele sim tinha uma!) ele me olhou de cima a baixo, por trás dos grossos óculos, pensou um pouco e, depois de alguns segundos gritou:
- Letice, me traz um copo d'água!
Acostumada à secura da garganta do chefe, a velha senhora do cafezinho, de traços nitidamente nordestinos, não demorou a atender o pedido. Mas para mim, incomodamente sentado à frente do "doutor Edney", aqueles segundos demoraram séculos. Por fim, depois de molhar a garganta, ele prometeu levar a idéia à reunião da diretoria. Uma vitória!
Para viabilizar os projetos (o meu e o da revista) comprometi-me com o presidente Fernando Henriques (é, é assim mesmo com s. E não, não é o Cardoso. Esse era dono de uma rede da supermercados "Pratas", que acho que não existe mais) que mandaria a tal revista pronta, apenas para a gráfica fotolitar e imprimir. Fui feliz e infeliz na idéia.
Feliz porque consegui, finalmente, um trabalho que justificava meu emprego: conquistei sala, mesa, cadeira, máquina de escrever e máquina fotográfica. Desenhei laudas pra emoldurar os releases. Idealizei a Revista da Acim com logotipos, vinhetas, colunas, capas e tudo o que foi necessário. Criei o "Concurso Acim de Jornalismo", pra ajudar a divulgar a entidade.
Consegui, com tudo isso, ir ampliando o horário de trabalho, pra duas, três, quatro, até que, depois de 3 anos, trabalhava 8 horas por dia e às vezes (períodos de fechamento da revista) fazia hora-extra! Imagine, pra quem começou cumprindo castigo por uma hora.
Mas fui igualmente infeliz. Acabei criando um monstro. Minha idéia era, depois de estruturar a assessoria e a revista, contratar pessoal e formar núcleos de trabalho. Mas apesar do sucesso da publicação, faltou um departamento comercial que viabilizasse economicamente o projeto. Como eu era o chefe de redação, o pauteiro, o repórter, o fotógrafo, o editor, o digitador, o paginador, o revisor e o arte-finalista, além de assessor da Acim, coordenador do prêmio Acim etc. etc. faltava-me tempo pra vender (função, aliás, na qual nunca me dei bem).
Por fim, o "doutor Edney" foi tomar água noutra bica (a última vez que encontrei o Edney, Edney Francisco Ferreira, ele era professor da UEM. Será que ainda está por lá? Saudades de você companheiro), mudaram os diretores, a Acim passou por um processo de reformulação que resultou na modernização do SPC e de toda a estrutura da entidade e eu fechei o ciclo: instalado em sala própria, com arquivos e mesas, atulhado de papéis e funções mal-resolvidas, editando uma revista deficitária e feita de forma precária, voltei a sentir o vazio dos primeiros dias de trabalho.
Um dia, o Carlos Previdelli (irmão do ex-vice-reitor da UEM, o José) que ocupava um cargo de diretor da Acim, me chamou para uma conversa. Queria saber por que eu estava desmotivado e anunciou que faria modificações em meu setor. Era a senha. Levantei-me da cadeira, fui até a porta e fiz o que nunca fizera, gritei:
- Dona Letice, me traz um copo d'água!
E, antes mesmo que ela atendesse o pedido, que nunca antes tivera a coragem de fazer, voltei-me ao Previdelli e pedi demissão. Não sei se a dona Letice (ou seria Letícia?) me trouxe a água ou não. Creio que ela esteja aposentada (se ainda estiver viva) e até hoje não deve ter entendido o episódio. Mas não tem importância. Aquela água tinha mais a ver com a minha necessidade de auto-afirmação, que de matar a sede. Pra quem começou sem ter nem cadeira pra sentar, foi a bandeira fincada no topo da minha montanha.
Saí de cabeça erguida, mais uma vez feliz e infeliz. Feliz pela sensação do dever cumprido. E infeliz por abandonar um dos mais interessantes projetos em que me meti nesses anos todos. Ficou a saudade dos amigos da Acim e o orgulho que ver a "minha" Revista Acim chegando à maioridade, com prestígio e credibilidade. E ainda hoje, nos momentos de indecisão ou dificuldade, me lembro do Edney e sinto vontade de gritar:
- Dona Letice, me traz um copo d'água!
(*) Escritor por devoção, 46 anos, poeta por impulso, jornalista por profissão há 28 anos. Pai da Édile e do Dilee, marido da Sueli, avô da Julia. Três ou quatro livros escritos, nenhum publicado (procura editora, séria, desesperadamente). Perfil? Bom, já foi bóia-fria, catador de batatas, lavador de banheiros, pasteleiro, feirante, churrasqueiro de restaurante beira de estrada, pacoteiro, vendedor de tecidos, derrissador de café, repórter de impresso, pauteiro de TV, assessor de imprensa, revisor, diagramador, editor de texto de TV, funcionário público estadual e municipal, dono de lanchonete, confeccionista, balconista, corretor de imóveis, editor-chefe de telejornal, entre outros... Atualmente vende sanduíche natural na praia de Inajá, onde mora.
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