12.3.08

POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA OU “A VERDADE QUE NÃO PODE SER DITA”

Por RUDÁ RICCI

1. A política como “carnavalização”

Este artigo nasceu a partir da leitura do texto de Christian Kupchik, intitulado “Danza Loco el Carnaval”, publicado na revista Quid, distribuída pela livraria mais charmosa de Buenos Aires, a El Ateneo (localizada na não menos charmosa Calle Florida). Ao ler o artigo de Kupchik, lembrei-me de um texto de Boaventura Santos, publicado na Colômbia, em que ele afirmava que a política latino-americana é “carnavalizada”, ou seja, possui um tom de transgressão sem, contudo, romper com a ordem. Obviamente que nesta linha de citações e lembranças, logo surge Sérgio Buarque de Holanda, com seu homem cordial, ou seja, aquele que se relaciona politicamente a partir do coração, do sentimento, da falsa (ou sonhada) intimidade com aquele que tem poder. É essa intimidade presumida que o voto deveria conferir que faz do eleitor uma pessoa desejosa da aproximação quase promíscua com o eleito, agora autoridade pública. A “carnavalização” se alimentaria deste jogo de máscaras, porque o eleito latino-americano se alimenta e estimula esta falsa intimidade.

Ora, o que teria acontecido na reunião de Presidentes latino-americanos (Grupo Rio), realizada em Santo Domingo, onde após troca de insultos, autoridades da Colômbia, Venezuela e Equador apertaram as mãos e fizeram juras de paz? “Foi a carnavalização, imbecil!”, diria algum seguidor das frases de efeito da política norte-americana.

Comecemos pela noção de carnaval, ou seja, os traços históricos e atávicos que esta festa latina, tão latino-americana, derramou sobre nossa política. O artigo de Kupchik apresenta um bom roteiro. Segundo este autor, o carnaval possui uma força primitiva, que nos convida a um baile selvagem. Os gregos já celebravam o carnaval em 1.100 a.C. Há registros desta festa de adoração a Ísis (deusa da maternidade e fertilidade na mitologia egípcia), mas também nas Bacanálias, nas Lupercálias e nas Saturnálias romanas. As Bacanálias eram festas de gregos e romanos dedicadas à Baco e Dionísio, marcadas por banquetes e orgias. As Lupercálias, celebradas em 15 de fevereiro, homenageavam Fausto. As Saturnálias, por sua vez, festejavam Saturno, em 17 de dezembro. Quem representava Saturno assumia a figura de um sátiro.

A origem do Carnaval, portanto, é de uma festa catártica, ou seja, de “purificação” pelo exagero, pela emoção explosiva, irracional, selvagem. Ao término do Carnaval se acreditava - principalmente na Idade Média - que se suspendia a carne (do latim carnelevarium), dando origem à quaresma. Não deixa de ser surpreendente que na Idade Média (conhecida erroneamente como idade das trevas) ocorriam duelos de confeti, desfiles de carros alegóricos e cavalos, tudo coroado com luzes de velas e tochas. Jogos, banquetes e bailes, fartos em comida e bebidas criavam um cenário louco, onde homens vestiam-se de peles de animais e corriam pelos campos, invadindo casas e propriedades. Era o horror dos Papas, que condenavam o Carnaval. Já em 1523, Carlos I baixou uma lei que proibia o uso de máscaras nessas festas. E ai entram as máscaras. As máscaras do Carnaval e da política latino-americana.
As máscaras italianas nascem nas homenagens fúnebres, em que o rosto do falecido era reproduzido e lembrado. Mas aí, as Saturnálias adotaram as máscaras, revestindo-as de caráter festivo. Um salto e tanto, diga-se de passagem: da morte à festa, da lembrança sofrida ao bacanal.

A máscara, neste caso, esconde uma verdade que nem sempre pode ser dita. E é aqui que surge o gancho para a política.
O carnaval é uma representação cômica. Mas também dialoga, com humor e desdém, com o diabólico. Kupchik sugere que a máscara procura, por isto mesmo, exorcizar o sinistro. Mas também auxilia a assumir um pecado pela presunção da inocência, já que ninguém sabe quem está sob a proteção do disfarce.

Finalmente, a festa carnavalizada é uma transgressão autorizada, que rebaixa as autoridades, banaliza o poder instituído, cria novas identidades.

Trata-se de um jogo de espelhos, de imagens invertidas. Mas que situação é criada quando a própria autoridade política se apropria deste estratagema? Enfim, o que ocorre nas relações simbólicas de representantes e representados, quando o eleito veste a máscara do Carnaval e produz um pastiche da autoridade?
Estaríamos, nesse caso, presenciando um poderoso jogo simbólico do Poder Instituído, em que a autoridade se ridiculariza em público, se tornando sujeito e objeto da transgressão autorizada? A carnavalização da política latino-americana seria uma poderosa arma de manutenção do poder, admirada pelos súditos como uma revelação do ridículo e provisória da política oficial?

2. A reunião de Santo Domingo: a carnavalização da ameaça de guerra no Continente

As tensões crescentes entre Equador e Colômbia, apimentada pela radicalização de Hugo Chávez e a ruptura diplomática desfechada por Daniel Ortega, da Nicarágua, obrigaram muitos cientistas políticos do continente a se perguntarem se a América Latina é um espaço de garantia de paz ou se opta pela guerra de exceção, contra inimigos eleitos por um ou outro Estado. Enfim, seria possível invadir o espaço de outra nação em nome da guerra contra os inimigos de outra nação? Ou a paz é um acordo tácito da região, um princípio que funda a soberania absoluta de cada nação?

Após a invasão do exército colombiano sobre terras equatorianas, bombardeando um grupo guerrilheiro das FARC (bombardeio confirmado pelo secretário geral da OEA, José Insulza), Nicarágua, Venezuela e Equador procuraram isolar politicamente o governo da Colômbia. Hugo Chávez foi o mais claro e midiático, transferindo tropas para a fronteira, o que por si indicava o risco do governo colombiano invadir qualquer país em busca de seus inimigos internos. O governo equatoriano fez um tour pela América Latina, estimulando a adoção de represália contra Älvaro Uribe. Continuou tentando assumir a dianteira política, solicitando que boinas azuis, das ONU, para garantir a fronteira de seu país com a Colômbia.

A troca de acusações e agressões verbais antes e durante a reunião do Grupo Rio na República Dominicana parecia apontar para um conflito irreversível. A comprovação do bombardeio colombiano em terreno equatoriano foi a contraface da apresentação de supostos documentos encontrados em três computadores Toshiba encontrados no acampamento das FARC. Os arquivos encontrados revelariam um fundo de 300 milhões de dólares que Chávez teria criado para apoiar as FARC, numa ação de reciprocidade pela ajuda recebida pelas FARC quando o atual Presidente da Venezuela encontrava-se, em 1992, preso.
Mas, afinal, qual conclusão tirar deste jogo de tensões que permanece após o aperto de mãos e pedidos de desculpas que concluíram a reunião do Grupo Rio (após a troca de insultos e acusações entre as mesmas lideranças)? Habilidade política? Diversionismo? Um jogo duplo, que pretende dizer algo para a comunidade diplomática do mundo e afirmar algo distinto para o público interno de cada país?

Seria uma verdade que não pode ser dita? E, por este motivo, é encoberta pelo uso de máscaras em público? Não estaríamos presenciando mais uma prova da carnavalização da política latino-americana?
Enfim, pode-se afirmar que foi melhor assim, porque se evitou uma guerra. Mas, então, qual motivo para ter chegado a tal limite? E qual motivo fez a tensão diminuir, mas não se dissipar? O problema da carnavalização política é justamente este: a autoridade pública se auto-banaliza. Torna seus atos um pastiche. Exagera. Transgride sem romper. E utiliza o espaço público como palco.
A máscara é sempre utilizada para expressar uma verdade que não pode ser dita. É isto que denominamos de inteligência política dos governantes latino-americanos.

RUDÁ RICCI - Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, membro da executiva nacional do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. E-MAIL: ruda@inet.com.br . SITE: www.cultiva.org.br . Blog: rudaricci.blogspot.com