Será que o surtado sou eu?
FERREIRA GULLAR
O PRINCÍPIO constitucional, segundo o qual “todos são inocentes até prova em contrário”, está fora de discussão, uma vez que a imposição deliberada da injustiça é intolerável. Isso não quer dizer que sejamos o tempo todo justos nem, muito menos, que a sociedade em que vivemos esteja livre de injustiças. O homem é muitas vezes injusto, mas inventou a justiça porque deseja ser melhor do que é. Isso nos faz acreditar que a luta pela sociedade justa -qualquer que seja o nome e a forma que tome- jamais cessará, e por duas razões: primeiro, porque esse objetivo nunca será atingido, e, segundo, porque o homem jamais desistirá de buscá-lo.
Com aquele princípio constitucional todos concordam, mas, quando é levado à prática, surgem algumas questões.
Tomemos como exemplo a recente decisão do presidente do TRE do Rio de Janeiro, que se dispôs a não aceitar o registro da candidatura de pessoas com ficha suja, isto é, que estejam respondendo a processos judiciais. Tal decisão, que contraria interesses de muitos políticos e partidos, foi logo contestada, sob a alegação de que fere aquele princípio constitucional de que todos são inocentes até que se lhe prove a culpa. “O acusado só deixará de ser considerado inocente se a sua culpa for reconhecida por decisão da Justiça em última instância.”
Essa é de fato a prática entre nós. Nas últimas eleições, houve, aqui no Rio, o caso de um político que havia sido condenado por homicídio em primeira instância e, mesmo assim, foi dado como inocente e teve sua candidatura aceita.
Pondo de lado firulas jurídicas, custa engolir que tal sujeito possa ser candidato, quando essa palavra, conforme lembrou recentemente o presidente do TSE, vem do latim “candidus” e significa “limpo, sem mácula”. E assim foi que o tal cara, condenado por homicídio, foi considerado “limpo” pela Justiça Eleitoral, apto a candidatar-se, eleger-se e ter direito a foro privilegiado. Deve ser assim mesmo, está tudo correto e o surtado sou eu?
Este é o ponto. Pode-se mesmo considerar inocente alguém que já foi condenado pela Justiça? Se se aceita a tese de que ele continua inocente, embora tenha sido sentenciado em primeira instância, cabe perguntar para que serve a primeira instância. No meu entender de leigo, se alguém foi julgado e condenado, é porque a Justiça lhe reconheceu a culpa. Embora entenda pouco dos procedimentos judiciais, quer me parecer que eles implicam a avaliação dos elementos do processo, a fim de que se caracterize ou não a procedência das acusações. Se, no final, o tribunal o inocenta, significa que as imputações contra ele eram infundadas e, em face disso, continuará dado como inocente. Mas, se, pelo contrário, o tribunal o condena, poderíamos, ainda assim, tê-lo como inocente? Não é à Justiça que cabe dizer, em face do dispositivo constitucional, se a culpa de alguém foi provada ou não?
Há coisas em nossas leis e nos procedimentos judiciais que não dá para entender, já que todos os dias vemos pessoas que foram condenadas por crimes graves, até mesmo hediondos, gozando de liberdade. Um exemplo notório é o do jornalista Pimenta Mendes, que matou covardemente sua ex-namorada e, depois de condenado a 19 anos de prisão, continua livre, graças aos recursos que seu advogado impetra sucessivamente. E em que pese à indignação da sociedade e à revolta da família da vítima, livre continuará até que seja sentenciado em última instância, se o for. Só então será preso, se vivo ainda estiver.
Não sei se esse caso é tão ou mais revoltante que o do cirurgião plástico Farah Jorge Farah, que matou e esquartejou a amante. Após admitir, durante o julgamento, o crime que praticara, o juiz perguntou-lhe por que o fizera, e ele respondeu: “Surtei, excelência!” Pois bem, esse cidadão foi condenado a 13 anos de prisão (quase a pena mínima, que é de 12 anos) e saiu livre do tribunal. Só quando essa condenação for reconhecida em última instância -o que certamente não ocorrerá tão cedo- será finalmente recolhido à prisão.
Na minha total ignorância jurídica, guiado apenas pelo bom senso e pela lógica da vida, considero que o cidadão condenado pela Justiça, ainda que em primeira instância, deve ser preso e, se recorrer da decisão judicial, o fará na condição de sentenciado, e não mais na de inocente.
Devo esclarecer que entendo a necessidade da punição, menos como castigo do que como uma autodefesa da sociedade, mas é certo também que a generalização da impunidade tornou-se uma ameaça à própria ordem social. Data vênia.
O PRINCÍPIO constitucional, segundo o qual “todos são inocentes até prova em contrário”, está fora de discussão, uma vez que a imposição deliberada da injustiça é intolerável. Isso não quer dizer que sejamos o tempo todo justos nem, muito menos, que a sociedade em que vivemos esteja livre de injustiças. O homem é muitas vezes injusto, mas inventou a justiça porque deseja ser melhor do que é. Isso nos faz acreditar que a luta pela sociedade justa -qualquer que seja o nome e a forma que tome- jamais cessará, e por duas razões: primeiro, porque esse objetivo nunca será atingido, e, segundo, porque o homem jamais desistirá de buscá-lo.
Com aquele princípio constitucional todos concordam, mas, quando é levado à prática, surgem algumas questões.
Tomemos como exemplo a recente decisão do presidente do TRE do Rio de Janeiro, que se dispôs a não aceitar o registro da candidatura de pessoas com ficha suja, isto é, que estejam respondendo a processos judiciais. Tal decisão, que contraria interesses de muitos políticos e partidos, foi logo contestada, sob a alegação de que fere aquele princípio constitucional de que todos são inocentes até que se lhe prove a culpa. “O acusado só deixará de ser considerado inocente se a sua culpa for reconhecida por decisão da Justiça em última instância.”
Essa é de fato a prática entre nós. Nas últimas eleições, houve, aqui no Rio, o caso de um político que havia sido condenado por homicídio em primeira instância e, mesmo assim, foi dado como inocente e teve sua candidatura aceita.
Pondo de lado firulas jurídicas, custa engolir que tal sujeito possa ser candidato, quando essa palavra, conforme lembrou recentemente o presidente do TSE, vem do latim “candidus” e significa “limpo, sem mácula”. E assim foi que o tal cara, condenado por homicídio, foi considerado “limpo” pela Justiça Eleitoral, apto a candidatar-se, eleger-se e ter direito a foro privilegiado. Deve ser assim mesmo, está tudo correto e o surtado sou eu?
Este é o ponto. Pode-se mesmo considerar inocente alguém que já foi condenado pela Justiça? Se se aceita a tese de que ele continua inocente, embora tenha sido sentenciado em primeira instância, cabe perguntar para que serve a primeira instância. No meu entender de leigo, se alguém foi julgado e condenado, é porque a Justiça lhe reconheceu a culpa. Embora entenda pouco dos procedimentos judiciais, quer me parecer que eles implicam a avaliação dos elementos do processo, a fim de que se caracterize ou não a procedência das acusações. Se, no final, o tribunal o inocenta, significa que as imputações contra ele eram infundadas e, em face disso, continuará dado como inocente. Mas, se, pelo contrário, o tribunal o condena, poderíamos, ainda assim, tê-lo como inocente? Não é à Justiça que cabe dizer, em face do dispositivo constitucional, se a culpa de alguém foi provada ou não?
Há coisas em nossas leis e nos procedimentos judiciais que não dá para entender, já que todos os dias vemos pessoas que foram condenadas por crimes graves, até mesmo hediondos, gozando de liberdade. Um exemplo notório é o do jornalista Pimenta Mendes, que matou covardemente sua ex-namorada e, depois de condenado a 19 anos de prisão, continua livre, graças aos recursos que seu advogado impetra sucessivamente. E em que pese à indignação da sociedade e à revolta da família da vítima, livre continuará até que seja sentenciado em última instância, se o for. Só então será preso, se vivo ainda estiver.
Não sei se esse caso é tão ou mais revoltante que o do cirurgião plástico Farah Jorge Farah, que matou e esquartejou a amante. Após admitir, durante o julgamento, o crime que praticara, o juiz perguntou-lhe por que o fizera, e ele respondeu: “Surtei, excelência!” Pois bem, esse cidadão foi condenado a 13 anos de prisão (quase a pena mínima, que é de 12 anos) e saiu livre do tribunal. Só quando essa condenação for reconhecida em última instância -o que certamente não ocorrerá tão cedo- será finalmente recolhido à prisão.
Na minha total ignorância jurídica, guiado apenas pelo bom senso e pela lógica da vida, considero que o cidadão condenado pela Justiça, ainda que em primeira instância, deve ser preso e, se recorrer da decisão judicial, o fará na condição de sentenciado, e não mais na de inocente.
Devo esclarecer que entendo a necessidade da punição, menos como castigo do que como uma autodefesa da sociedade, mas é certo também que a generalização da impunidade tornou-se uma ameaça à própria ordem social. Data vênia.
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