11.8.08

O poder da fé, o do verbo e o da elegância

VANIA CINTRA

No princípio, eram os fatos. Fatos que a sociedade brasileira repudiou, provocando outros fatos.
Logo em seguida, veio o verbo. E só o verbo. Do qual a fé depende, uma vez que não depende dos fatos. O verbo era melódico, o tom do verbo era insinuante e romântico, no que de mais absurdo o adjetivo romântico possa sugerir. O verbo não estava exatamente na lei e não se referia exatamente a fatos — o que é uma prerrogativa do verbo enquanto verbo — mas, enquanto verbo e porque apenas verbo, pôde ser divulgado e ouvido aos quatro ventos. E pôde ser aceito, tal como aceitamos músicas e ritmos, por menos perfeitos ou delicados que possam ser, à força da sua repetição em nossas orelhas.
Como resposta ao verbo solto, veio o silêncio. O silêncio a respeito dos fatos, de fatos incontestáveis. O silêncio, sim, foi imposto — imposto pela força de uma lei, a denominada Lei da Anistia. E pela elegância com que uma lei deve ser acatada por aqueles que nada devem e nada têm a temer.
Mas, porque um verbo se contesta com outro verbo, da mesma forma como um fato apenas se contesta com outro fato, nenhum verbo poderia ser contestado pelo silêncio. E assim o verbo pôde não ser contestado.
Os fatos, que estavam no princípio de tudo, puderam então ser esquecidos — um esquecimento imposto pelo verbo, pelo silêncio e pela elegância. E indivíduos que participavam de grupos guerrilheiros, criminosos antes abominados pela classe média ilustrada e semi-ilustrada, puderam ser transformados em heróis de uma “resistência” que os mais ilustrados combatiam, por impertinente, e que aos semi-ilustrados jamais comoveu, por flagrantemente danosa.
Verbo por verbo, fato por fato, um Juiz do Supremo pôde argumentar, para justificar sua manifestação a respeito do que considera um indevido uso das algemas: “Se a opinião pública pode ser influenciada a (sic) alguém exposto ao uso de algemas, o que dizer de um júri da pacata cidade de Laranjal, no interior paulista?”. Com isso, ele nos quis dizer que a mera imagem de um acusado portando algemas poderia ter sido suficiente para condená-lo, independentemente dos fatos apurados.
Essa idéia nos obriga a refletir imediatamente sobre como estaria sendo influenciada a opinião pública exposta ao poder do verbo — exposição que é um fato. E assim também deveríamos refletir, entre fatos, silêncios e verbos, como e por que pôde uma jornalista bem situada afirmar que haveria até agora, entre “militares e a antiga militância revolucionária de esquerda”, uma “convivência elegante”, que deveria ser mantida e que poderia ser rompida pela presença de “fardas brilhantes, com quatro estrelas no peito”, na “provocação” organizada naquele Clubinho onde a “milicada” costuma se reunir em pijamas e estaria reclamando “fora de hora”, emprestando-lhe dimensão despropositada e talvez provocando “uma guerra”.
É possível que uma “convivência elegante” signifique, de acordo com qualquer arrogante e enviesada definição, que uns, com galhardia, possam exigir que outros façam silêncio, e admitam quaisquer culpas e desmandos, desmintam a que vieram e a que vêm, sofram punições, sejam desmoralizados e desfaçam-se em garbosos rapapés. Somente assim entendendo a elegância, ou seja, somente entendendo “convivência elegante” como uma relação baseada em parvoíces, e muito valorizando-a, pôde a jornalista recomendar aos participantes da última manifestação no Clube Militar que cuidem de mantê-la, caso contrário poderão ser apontados como “radicais”, ou “passar por defensores da tortura ou de torturadores”. É admirável que alguém tão lúcido não tenha sido capaz de recomendar “elegância” à militância de esquerda em armas no passado para que a convivência jamais virasse uma guerra. Pois ela virou uma guerra. Por quê? Poderia ter também perguntado à época: “quem lucra com isso?” Ninguém perguntou?
Terá sido, por acaso, a jornalista nomeada conselheira das Forças Armadas? Tudo é possível. Se não foi, investe-se, por conta própria, na função de seu guia espiritual. Ainda assim auto-investida, não se revela confiável, ao recomendar atitudes pautadas apenas em receios de mexericos de comadres. Mas em nenhuma hipótese seria ela autoridade suficiente para pretender determinar a conveniência das posturas ou o papel dos militares na sociedade brasileira. Muito menos poderia considerar-se autoridade suficiente para determinar a reação da sociedade brasileira à reação dos militares aos fatos que os agridem — a menos que creia que deve e que poderá induzir essa reação. Investe-se, então, por conta própria, na função de guia espiritual da sociedade. Aliás, a jornalista apenas recomendou “elegância” aos militares ou os ameaçou? Ao que consta, seu único e real poder é uma coluna de opinião que, como muitos outros, mantém na imprensa — o poder do verbo, do qual se utiliza e no qual aposta as suas fichas. Convenhamos, pois, que, além de, como muitos outros também, exibir nenhuma isenção, não conseguiu ser minimamente elegante na defesa de sua fé.
Não se mostrou, tampouco, minimamente coerente, recomendando o que não conseguiu ou não quis praticar, apesar de que a elegância muito pouco importe quando convicções — e vidas — estão em jogo. E apesar de que os tempos sempre alterem os parâmetros que o cuidado com a elegância impõe aos comportamentos, de acordo com os valores e as expectativas dos mais poderosos, o que faz que os demais os confirmem e afirmem. Novos tempos, novos costumes. A 2ª grande guerra, por exemplo, encarregou-se de eliminar a elegância como tradição inclusive entre os Oficiais dos Exércitos combatentes. E a propaganda pôde fazer que mentiras muito deselegantes valessem bem mais que quaisquer verdades, mesmo as elegantíssimas.
No frigir dos ovos, o que existe hoje é um falso palco armado em praça pública, onde uma falsa motivação anima uma falsa discussão e provoca fatos de fato, que se avultam, enquanto se pretende que seja mantido o silêncio incapaz de contestar o verbo. Os que detêm o verbo e o seu poder não desejam a revogação ou a alteração da Lei da Anistia, pois o que, sim, pretendem é que a prática de crimes comuns imprescritíveis, ações cometidas sem qualquer razão política, seja atribuída aos que garantiram os Governos egressos do movimento de 64.
Lembremo-nos de como foram administradas as diversas anistias concedidas após conflitos sérios, principalmente, por ser a nossa anterior mais recente, da Anistia concedida por Getúlio Vargas em 1945. Talvez nos faça bem. A atual sanha estúpida em encontrar criminosos comuns entre os que construíram de fato e por direito a nossa história permitirá que homens honrados, que cumpriram seu dever, os que não apenas foram avalizados pelo Estado em sua missão como estimulados pela aprovação quase unânime da sociedade nacional, sejam hoje acusados, julgados — e condenados — por alegados princípios “superiores” que apenas ferem nossa doutrina jurídica e nossa tradição. Isso, e apenas isso, para a sádica satisfação de alguns poucos, deselegantemente histéricos, que influenciam os muitos elegantemente incautos porque desavisados. Nada mais.

Vania Leal Cintra — socióloga