9.9.08

Em nossos atuais e terríveis anos de chumbo grosso...

VANIA LEAL CINTRA

Nós, os patriotas, os bem intencionados, os bem educados, os de bom caráter, infelizmente fazemos muitas confusões. As confusões que fazemos só nos impedem a organização e embaçam nossos objetivos. E as fazemos, em geral, porque temos muito boas intenções — mas somos muito desatentos.
Ao percebermos que algo nos vai indo muito mal, querendo que tudo nos vá muito bem ou um pouco melhor, é comum nos exasperarmos, exatamente porque somos muito bem intencionados, e enchermos a boca de substantivos, verbos, adjetivos, advérbios, conjunções, preposições... e desandarmos a afirmar que o povo brasileiro é o responsável pela situação que o nosso País atravessa — e será responsável porque não tem educação, porque é ignorante e não tem bom caráter. Alguns talvez afirmem isso tão categoricamente porque creiam que o caráter se dá exclusivamente em decorrência da educação; outros ainda porque apostam em que a personalidade dos brasileiros seja uma herança de sei lá quais “raças tristes” e malditas entre as tantas que nos formaram a população desde sempre e/ou nos administraram enquanto colônia e depois.
Com isso nos colocamos acima de qualquer verdade. E nos retiramos, das costas e da frente, qualquer responsabilidade que em qualquer verdade possamos ter.
Mesmo as boas intenções, o bom nível de instrução e o indiscutível bom caráter nos permitem cometer muitos equívocos; mas talvez o primordial erro tosco que cometemos contra nós mesmos seja exatamente o de nos confundir. E o de confundir má ou nenhuma educação com ausência de caráter, tipo de colonização com imediata herança de supostas tendências intelectuais e emocionais dos colonizadores, boas intenções com esclarecimento, e ainda confundir tantos outros termos, e até mesmo atitudes, que se referem a objetos muito diferentes, por vezes incompatíveis entre si, mas cujos significados de complicado nada têm.

Um bicho bem “educado” é um bicho bem treinado. Por exemplo, um cão bem “educado” é aquele que não morde, não avança no filé que temos à mesa e apenas rosna e late nos momentos e no tom considerados por seu dono como adequados. Um bicho não transmitirá a outro bicho qualquer “conhecimento”. E eu bem gostaria que fosse, mas não é mesmo possível ter um bicho esclarecido. Mas os bichos poderão ser, sim, com muito pouco, considerados bem “educados”. Já a educação de um indivíduo humano ou a de uma população humana — que, esta sim, é a soma dos indivíduos, que não se confunde com a sociedade — requer outros parâmetros. E outros objetivos.
Se uma população não é bem educada, ou seja, se não tem elevados o grau de qualidade e a quantidade de seus conhecimentos, comportar-se-á de forma inadequada; e acreditará em qualquer potoca submetendo-se a corroborar com as fantasias que lhe são contadas a respeito do mundo, do seu País e, inclusive, aquelas ditas a seu próprio respeito. E apenas essas potocas ela irá perpetuar, através de suas próprias palavras, de seu próprio comportamento e de suas expectativas, “educando” os ainda menos educados em falsas teorias e, pior, com suas próprias atitudes bem intencionadas, para aquilo que consideram, por seus próprios juízos, ser uma “revolução” salvadora.
Para exemplificar e justificar o comentário e a preocupação: foi divulgada aos inscritos no sítio virtual da APSERJ (Associação Profissional dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro), não se sabe bem, mas imagina-se por que no exato domingo 07 de Setembro, a notícia, que já esvoaça há mais de dois meses por muitos outros espaços de comunicação, a respeito de um prêmio ganho em concurso internacional de redação por uma aluna do Curso de Direito de uma de nossas mais consideradas Universidades, a UFRJ (1). O título da redação premiada, que se refere especificamente ao Brasil, é “PÁTRIA MADRASTA VIL” (2). E foi premiada por quem? Pela UNESCO, a quem entregamos e mais uma vez orienta, de acordo com seus métodos e seus fins, a nossa “educação”.
Não conheço a manifestação de nosso Embaixador nessa Organização a respeito do prêmio. Mas que nos diz a redação premiada, infeliz já desde o título? Abusando da licença literária como um recurso válido à farsa que pretende desenvolver, diz-nos que a idéia de Brasil como nossa Pátria-“mãe gentil” é uma idéia errada porque, a rigor, a “mãe” não é “mãe”, é “madrasta”. Confundindo Governo com Estado, diz-nos também que “Afinal, de que serve um governo que não administra? De que serve uma mãe que não afaga?” E dirá também que o País precisa de “mudanças estruturais, revolucionárias, que quebrem esse sistema-esquema social montado; mudanças que não sejam hipócritas, mudanças que transformem!”. Não sabendo ou bem sabendo que um Estado requer uma burocracia, afirma que “A mudança que nada muda é só mais uma contradição” e “mudanças dentro do corpo burocrático do Estado não modificam a estrutura”. Diz-nos ainda que a pobreza e a desigualdade serão vencidas somente se e quando definirmos de forma diferente o nosso “posicionamento perante o mundo como um todo. Sem egoísmo. Cada um por todos...” E por aí vai. E vai um bocado fundo. Explica-se por que foi premiada.
Ora, a nacionalidade é um direito internacionalmente reconhecido. É o Brasil a nossa Pátria, pois o Brasil nos deu politicamente à luz, e não deixará de ser nossa Pátria a menos que queiramos uma outra, e que essa outra nos aceite e nos adote como seus “filhos” — o que, convenhamos, não parece ser a tendência ou a disposição de nenhuma das hoje supostamente disponíveis; ou a menos que venhamos a ser apátridas, o que de regra ocorre quando um Estado Nacional deixa de existir pela usurpação de seu território por um outro Estado que não admita a população vencida como seus nacionais. Mas uma estudante de Direito deveria saber disso. Ou não sabe? Ou não quer saber?
Por outro lado, o único sentimento que poderemos dedicar a um ser reconhecido como “vil” é o desprezo, nenhum outro. Mas aceitaremos aquele discurso estúpido como extremamente lógico, perfeito, acabado e irretocável — havendo ainda os que o possam considerar bem escrito e muito bem intencionado — caso não entendamos, nós, todos nós, por definitivo, 1. que o elemento Estado se inclui necessariamente na composição do elemento Pátria — uma vez que uma Pátria sem um solo de referência não se concebe e o solo pátrio não é o mundo, cujo território está politicamente dividido em Estados, mas um determinado território; 2. que Pátria também inclui o elemento Nação — daí o Estado possuir fronteiras e ser chamado Estado Nacional e daí também que os cidadãos de um Estado Nacional sejam denominados “compatriotas” ou “compatrícios”; 3. que Nação implica identidade e 4. que essa identidade exige um comportamento constantemente afirmativo e defensivo, além de, eventualmente, ostensivamente agressivo, para que seus valores se mantenham (como as atuais circunstâncias nos exigem e também, de forma ilusoriamente paradoxal, o discurso premiado pela UNESCO nos indica fazer).
Note-se que, por ter sido premiada em virtude do reconhecimento de seus méritos por uma organização internacional, a redação que nos avilta, que traduz o discurso e a ambição de outros sobre nós e sobre o que é nosso, não os que deveriam ser nossos discursos e ambições, será sem dúvida, disseminada em todas as Escolas brasileiras. E nos “educará”. Ou por que razão estaria ela sendo publicada no dia 07 de Setembro por professores em um sítio freqüentado apenas por professores? Não é, pois, um texto idiota qualquer que possa ser descartado de nossas preocupações. Exige um comportamento ofensivo como reação — caso contrário, nosso destino e nossos direitos serão alinhavados e arrematados exata e definitivamente da forma como a UNESCO preconiza. E nossos “méritos” poderão ser reconhecidos...
A propósito: noutro dia, conversando com alguém que me perguntava o que faço na vida, ouvi: “Que alegria! Relações Internacionais deve ser algo fascinante, muito, muito bonito!”. Possivelmente, a criatura imaginou que passo meus dias a criar vinhetas para uma agência de intercâmbio comercial ou cultural qualquer. Foi difícil explicar-lhe que nada há de bonito, alegre ou sedutor no estudo das razões que promovem e no de toda a sujeira que ampara a disputa pelo poder. E não estou segura de que tenha conseguido ser compreendida.
Deveria, por certo, ter tentado explicar antes o que é o poder. Mas, ao que tudo nos indica, isso lhe e me seria inútil: como lograr desmentir “nossos” meios de comunicação ou “nossas” Universidades que de todos os lados e tendências nos induzem, dia após dia, hora após hora, a considerar que o importante de fato são as eleições norte-americanas ou o conflito na Geórgia, assim como nos incitam a procurar manter e aprimorar a nossa “democracia”, aquela que, enfim, pôde vir a nós, suave e airosa, após alguns “tenebrosos anos de chumbo” já passados? Muito, muito, muito difícil. Sozinha, ou quase sozinha, não dá.

(1) 21/06/2008 {http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL607175-5606,00-PREMIADA+PELA+UNESCO+DANCARINA+DO+HUCK+QUER+SER+DEFENSORA+PUBLICA.html}

(2) por esse título, a íntegra do texto poderá ser procurada e encontrada na web.

Vania Leal Cintra - socióloga