20.9.08

O lavador e o poder

De Conceição Freitas - conceicao.freitas@correioweb.com.br

Pelo que contou a repórter Teresa Cunha, em matéria publicada na edição de ontem do Correio, o lavador de carros que montou casa na Praça dos Três Poderes parece ter acreditado que, em estando tão perto dos poderosos, as coisas poderiam ser mais fáceis para ele. É nisso que dá viver tão perto do poder. A proximidade física é tanta que atropela a razão. Se vejo o presidente passar, se lavo o carro de ministros do Supremo, se dou e recebo bom-dia de homens e mulheres importantes, logo é mais fácil para mim conseguir o que quero.
O lavador já vinha se achando. Já havia quebrado o cadeado que fechou a caixa-d’água onde fica o registro das torneiras que abastecem o poder. E feito ameaças aos funcionários do Panteão. Segundo a diretora do Centro Cultural Praça dos Três Poderes, Clarissa Wagner Reyes, ela foi impedida de fornecer água pública para uso particular. Vale parênteses: se o impedimento for ampliado para toda a cidade, todo o país, uma legião infindável de lavadores de carro ficará na secura completa. Sem emprego formal, sem água, sem renda. Danem-se.
Mas a ilusão de que o poder que emana da praça enlaça os que por ali vivem, transitam e ganham o seu de cada dia, essa triste ilusão parece que continuou a alimentar as expectativas do lavador de carro. Tanto que levou os móveis para a praça. Antes, havia conseguido sensibilizar os funcionários do STF para um abaixo-assinado a ser entregue ao presidente do Supremo e ao presidente da República pedindo a abertura das torneiras dos Três Poderes para os sem-poder.
O lavador de carros perdeu-se na ilusão do poder. Mas ele não foi e nem será o único. Pelo contrário. Ele vive na cidade com mais incidência de poderosos por metro quadrado do país. Somando-se a esses a enorme leva dos que se acham poderosos, temos então a cidade-sede da Associação dos Vocês Sabe com Quem Está Falando?
Nessa cidade tão poderosa, é comum ouvir alguém ao celular: “Ministro, pois não, ministro!”, “Senador, como vai o senhor, senador?”. Ministro e senador, pronunciados várias vezes e três tons acima do habitual. Nos restaurantes, nos corredores do Congresso, nas ante-salas de gabinete, é o que se ouve: “Estive ontem com o senador e ele me disse…”, pouco importa a abobrinha que o senador tenha dito. Menos ainda a atuação política. Seja ele um homem probo, espécime em extinção, ou não, se ele aparece numa sala toda ela esboça um sorriso subserviente, bajulador. Quem tem poder exerce um fascínio monumental sobre quem não tem, sobre quem tem menos, sobre quem tem muito, mas não tanto.
Foi aí que o lavador de carros se perdeu. Quis arrombar o registro da água, não conseguiu. Ameaçou funcionários, não deu em nada. Então pôs os móveis na praça e ainda levou lençóis, louças, produtos de limpeza para montar o cenário. Uma bela jogada de marketing, claro, legítima, claro, não fosse um rastro de arrogância que deixou pelo caminho. Talvez estimulada pela proximidade com o poder.
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(cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)
Correio Braziliense Crônica da Cidade 20/9/08