29.10.08

O pedestre

José Maria Nunes Marques

De toda a estranha fauna urbana a figura do pedestre é a mais lamentável.
Realmente não há o ser pedestre, há mesmo é o estar na condição de pedestre. O automobilista estaciona a sua máquina e, de súbito, ei-lo metamorfoseado, em pedestre, atravessando a rua. O pedestre não se confunde com o homem a pé. No sertão os homens vivem muito a pé, ainda hoje, e nem por isso entram na categoria. É verdade que, mesmo na roça andar a pé não é título, porque quem tem status anda a cavalo. O homem, como ser cultural, resiste a andar por seus próprios meios, desejando sempre estar em cima de alguma coisa, que lhe facilite o ir e vir permanente.
Mas, dizíamos, o sertanejo a pé não se caracteriza como pedestre, tipo que só se entende no contexto automobilístico, sendo, portanto, um produto ou um animal específico das grandes cidades modernas, dominadas completamente pela máquina que se auto move.
O pedestre pode ser definido como um obstáculo no caminho do automóvel. Sendo um obstáculo ele cria a reação no sentido inverso, ou seja, no sentido de sua própria destruição. O automóvel, ao contrário do que imaginam os observadores superficiais, também pensa. Além de tudo aquilo que vem descrito e indicado no “livreto do proprietário”, motor, rodas, carroceria, faróis e tantas outras coisas, o automóvel incorpora ao seu conjunto, – em especial ao seu dinamismo – o homem que o dirige. Este passa a ser uma parte do carro, e a raciocinar como tal. Digamos que o carro usa o cérebro do homem do mesmo modo como o homem usa – (por enquanto) – os computadores. E assim que o automóvel pode tomar consciência do pedestre como alguém que ocupa um lugar no espaço sendo pois um concorrente, um adversário. Há uma questão de “espaço vital” no relacionamento automóvel X pedestre, porque o primeiro tem um insaciável apetite por espaços livres, onde possa expandir a sua personalidade. A psicologia do automóvel é exibicionista. Ela não pode suportar a presença lerda e incômoda do pedestre, inapropriadamente equipado para o locomoção, mas que teima em andar, atravessando ruas e passeios, que por natureza são destinados aos carros (vide os passeios de Salvador e mesmo os de Feira de Santana).
Daí parte o automóvel para a caça ao pedestre.
Podemos definir o pedestre, já agora, como o animal de caça do automóvel.
Não há quem não tenha assistido em filmes àquelas pomposas caçadas à raposa, com centenas de cães, os caçadores a cavalo, vestidos a caráter, vermelho, preto, cinza, com lacaios tocando cornetas e – no enredo- uma dama que cai cujo cavalo dispara. Um passatempo elegante para os caçadores, mas um vexame mortal para a raposa.
A visão dessas caçadas me ocorre freqüentemente nas grandes avenidas, quando os carros, no sinal verde do lacaio mecânico, disparam sobre os pedestres, que fogem como raposas assustadas. Nem todos, porém, conseguem escapar. Não encontram a tempo uma toca, como as raposas, mais espertas. Entram então para as estatísticas, juntamente com os cérebros dos automóveis, e vão servir aos debates dos técnicos e à meditação dos homens, nos raros momentos em que não estão como pedestres nem como componentes do psiquismo do automóvel.
É por toda essa loucura que, às vezes, olhando orgulhosamente a nossa obra, vislumbramos, por entre os fumos poluidores da civilização de consumo, a figura tosca e pré-histórica de um “brucutu” armado de porrete, a golpear a própria cabeça.
Feira de Santana, 1973.

(Marques, J.M.N. “A Magia do Silêncio: Crônicas”. Organizado por Raymundo Luiz de Oliveira Lopes e Maria da Conceição de Oliveira Lopes. ISBN 85-7395-094-3. Feira de Santana, Bahia: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2004. pp. 93-94)