Eleções e democracia participativa
Por RUDÁ RICCI
Este artigo nasceu de uma provocação numa das listas de discussão sobre democracia participativa. O economista Eduardo Marques, da coordenação do Fórum Paulista de Participação Popular escreveu um balanço das eleições municipais deste ano adotando como perspectiva a democracia participativa.
Segundo Marques, as eleições não teriam adotado o tema da democracia participativa. Nem mesmo entre os candidatos petistas, partido que adotou este tema como base do seu modo de governar. Este vínculo é tão direto que o autor da provocação sustenta:
“Deixando em segundo plano a radicalização da democracia e a participação popular, estamos atingindo todo o edifício do “modo petista de governar”, e com ele, toda a agenda política local inovadora que fomos capazes de implantar nas últimas décadas no Brasil.”
Marques vai além e avalia que nas eleições deste ano, principalmente as que foram ao segundo turno (30 municípios brasileiros), houve dificuldades em retomar o debate em torno da democracia participativa e da participação popular. Em muitos casos, a proposta do orçamento participativo, quando citada, não aparecia como aumento do poder de decisão do cidadão sobre o planejamento da cidade, se aproximando de uma mera consulta, um expediente secundário ou complementar de eixos mais importantes da ação do governante. Um acessório. Cita Porto Alegre como exemplo, onde o tema não gerou consenso entre os candidatos progressistas. Mesmo em São Paulo, onde a candidata Marta Suplicy, quando prefeita, adotou o orçamento participativo e duas estruturas de acompanhamento de formas participativas de gestão pública (a Coordenadoria de Participação Popular e a Coordenação do Orçamento Participativo) o tema sequer apareceu nos debates.
O autor vai além. Sustenta que no governo Lula houve abertura de diálogo com setores sociais que defendiam aprofundamento dos instrumentos democráticos do país. Mas o resultado foram ações marginais deste governo na direção da democracia participativa. Cita as audiências públicas do PPA 2004-2007 (que não ocorreram novamente na segunda gestão de Lula), a realização de conferências das cidades e aumento das conferências nacionais temáticas. Contudo, Marques admite que essas ações não eram centrais na pauta do governo federal. As audiências públicas e as conferências não lograram avanços, afirma. O mesmo teria ocorrido com os governos do Pará, Bahia e Sergipe, onde lideranças da democracia participativa do Brasil depositavam grandes esperanças. E sugere a mudança do eixo geopolítico das experiências participativas:
Fundamentalmente, os resultados mais expressivos da democracia participativa vieram do Nordeste, enquanto na porção Sudeste/Sul, este tema, quando entrou no debate, entrou pela “porta dos fundos”. (...) Em Porto Alegre, “berço da democracia participativa” assistimos ao seu enfraquecimento mais contundente. A vitória do PMDB/PSDB de Fogaça reforça dois movimentos: de um lado, a tática conduzida pelos setores conservadores em manter o OP de forma “rebaixada” - reduzindo poder de decisão da população e, portanto, seu protagonismo -, mas criando “falsos sinais” para setores populares e segmentos médios da população. De outro, a fragmentação da esquerda, mesmo no segundo turno, apontou para a falta de consenso em torno deste tema no campo progressista. Em Curitiba, a vitória do modelo de planejamento tecnocrático de cidade segue firme e forte com a vitória do PSDB. No Rio de Janeiro, dois candidatos de trajetória política errática não apresentaram formulações sobre o assunto, enquanto a esquerda, mais uma vez fragmentada, não foi capaz de organizar projeto algum para a sociedade. No mais, apenas uma idéia difusa de transparência na administração foi apresentada pelo candidato derrotado Fernando Gabeira. O eleito, Eduardo Paes, do PMDB/PSDB, é uma nulidade completa no tema. Em Belo Horizonte, o candidato vencedor Márcio Lacerda, patrocinado pelo PT e PSDB, deve priorizar o chamado “choque de gestão”, compromisso este que não tem como se misturar com “o choque de democracia”, a não ser mineiramente. De qualquer modo, seguirá o desafio de manter na agenda local o orçamento participativo, apesar da já visível redução em curso do seu poder de decisão popular e sua afinidade maior com a tecnocracia do planejamento. Em São Paulo, apesar do PT organizar, inicialmente, um grupo eleitoral de trabalho com vistas a formular ações no âmbito da democracia participativa, suas sugestões acabaram descartadas pelos “sistematizadores” do programa de governo e pela coordenação da campanha . O tema não foi motivo de agenda da candidata, nem tampouco de proposta pública de governo. De resto, a vitória do DEM/PSDB reflete o predomínio de uma aliança que vem eliminando ou sufocando os poucos canais de participação na cidade. Em Recife, o Secretário de Participação Popular, João da Costa, foi eleito pelo PT ainda no primeiro turno, sem a presença de Lula no palanque eleitoral. Apesar do tema da democracia participativa ganhar espaço no debate político-eleitoral e projetar Recife inclusive nacionalmente, a imprensa do centro-sul insistiu na tese de que o Prefeito João Paulo estaria elegendo um “poste” e que as cartilhas do OP distribuídas no início do ano poderiam cassar o mandato do prefeito eleito. Na verdade, o Prefeito João Paulo, ao indicar João da Costa para sua sucessão, colocou o tema no centro do debate, e colheu uma vitória impressionante. Para a população recifense, incorporada aos processos de participação popular, João da Costa já era muito conhecido e representava o centro de um projeto em curso que vem colhendo resultados positivos. Sem dúvida, as 10 mil cartilhas do OP impressas tiveram influência eleitoral muito menor do que a aparição de Kassab, para todas as TV´s, Rádios e Jornais, entregando um cheque para o Metrô de José Serra, às vésperas da eleição. O processo de participação popular em Recife, de forma estrutural, sem dúvida, foi fundamental para a vitória das forças de esquerda. Em Fortaleza, apesar das previsões pessimistas, a Prefeita Luizianne Lins foi reeleita em primeiro turno, sem a presença em palanque do Presidente Lula e concorrendo contra todos os caciques estaduais – PSDB/DEM/PPS. Nesta cidade, tal como em Recife, o Orçamento Participativo tem papel importante no Governo, e a re-eleição em primeiro turno representou a aprovação da população a esta forma de governar.
O que mais chama a atenção nas proposições analíticas de Marques é esta tese: a democracia participativa só teve relevância nas campanhas eleitorais do nordeste. Cita Recife e Fortaleza onde o tema da democracia participativa foi uma tônica dos prefeitos eleitos no primeiro turno.
Esta sugestão é relevante porque foi nesta região, justamente, onde tivemos a concentração de vereadoras eleitas. O Brasil, as mulheres conquistaram maioria de vagas para vereadoras em apenas 17 Câmaras Municipais. A maioria concentra-se no nordeste. Temos, ainda, outra novidade, no mesmo sentido. Somente 11 Estados possuem portais de transparência das contas públicas, onde o cidadão pode acompanhar as receitas e gastos dos governadores: 100% dos Estados do sul, 43% dos Estados do Norte, 33% dos Estados do nordeste, apenas um Estado do sudeste (25%), e um Estado do Centro-Oeste (25%, somando-se o Distrito Federal).
Uma região que até então era marcada pelo machismo e coronelismo teria sofrido uma reviravolta política e dali emergem as inovações mais progressistas do país?
Lembremos que a gestão de Edmilson Rodrigues, em Belém (hoje no PSOL, mas que era filiado ao PT, quando se elegeu prefeito em 1996 e 2000) procurou inovar na gestão da cidade, criando um sistema de congressos permanentes, sejam temáticos ou envolvendo segmentos sociais como jovens e índios. Lembremos, ainda, a experiência cearense de Icapuí, destaque em relação às formas participativas de gestão do município.
O tema da democracia participativa é, realmente, recorrente na política nordestina.
O que estaria ocorrendo em relação ao tema da democracia participativa ao longo de nosso país?
A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA BRASILEIRA COMO EXPERIÊNCIA INACABADA
Levantamento realizado pelo Projeto Democracia Participativa (UFMG) no período 2001-2004 revela que o orçamento participativo (OP) concentrava-se nos municípios do sudeste (46% dos casos) e sul (34% dos casos). O nordeste representava apenas 12% do total dos casos. O gráfico abaixo possibilita uma visualização mais abrangente deste fenômeno:
A primeira hipótese que emerge é justamente até que ponto o OP seria eficaz na mudança da realidade social dos municípios. Em outras palavras, justamente nas regiões onde o OP é uma experiência mais comum, esta proposição não entrou como diferencial na pauta das campanhas eleitorais deste ano. Assim, no nordeste o OP ainda seria uma novidade, não totalmente validada na prática.
Esta seria uma hipótese mais cética e negativista a respeito do impacto concreto desta experiência sobre a realidade local.
Um segundo dado produzido pela mesma pesquisa, sugere outra hipótese que pode ser significativa. Vejamos o gráfico que apresenta este outro dado:
O gráfico acima indica que a experiência do OP é mais comum em municípios abaixo de 100 mil habitantes, justamente onde não ocorre segundo turno nas eleições municipais.
Segundo dados do IBGE a região Sudeste do país é a que possui maior percentual de municípios com mais de 100 mil habitantes: 7,8%. A região é seguida pelo Norte do país (4,2%), Sul (4%) e Centro-Oeste (3,4%). O Nordeste é justamente a região onde o índice é menor: somente 2,3% dos municípios nordestinos possuem mais de 100 mil habitantes.
Assim, se o OP é um fenômeno que atinge mais fortemente municípios com menos de 100 mil habitantes, o nordeste emerge como campo fértil para sua proliferação.
Esta constatação pode indicar que a prática de OP é mais facilmente gerenciada em municípios de menor tamanho, onde a complexidade da malhar urbana e dos serviços públicos é também menor.
Mas o importante, no momento, é compreender o quanto esta experiência permanece inacabada e caminha pela política formal de maneira tortuosa, tal como sugere Eduardo Marques.
Aqui, gostaria de tomar outro rumo nesta análise. Sugiro um complemento, para além desta leitura do deslocamento geográfico do OP (e, possivelmente, das práticas participacionistas do Brasil). O complemento pode ser assim sintetizado: a formalização do sistema partidário brasileiro (cuja hegemonia programática está centrada no PT e PSDB) diminui a chance da democracia participativa vingar como agenda política dos principais partidos (e candidatos) do país.
Explico. Minha hipótese é que existe um conflito latente entre a representação que emerge do processo eleitoral formal e aquele que emerge dos mecanismos próprios da democracia participativa. Se este conflito é real, seria a explicação plausível, como autodefesa dos candidatos, deste tema se afastar das campanhas eleitorais. A democracia participativa, em tese, coloca sob suspeição ou exige confirmação da legitimação do eleito pelas vias tradicionais e formais da democracia representativa. Seriam, assim, dois processos de legitimação: o voto na urna e um segundo voto em plenárias (no caso da eleição de delegados do OP) ou fóruns (nos casos da eleição da representação da sociedade civil em conselhos de gestão pública) que geram uma forte polaridade de representação numa mesma cidade.
Em outras palavras, um candidato pela via formal que defende a democracia participativa tem que estar convencido que sua eleição estará subordinada a outros processos eletivos que sucederão sua posse. Talvez, até mais: terá que supor uma legitimação inacabada pela via representativa formal e tradicional.
No fundo, este candidato se apresenta como um vetor de mudança da legitimação política em seu município. Sabe que estará implantando um conflito implícito na política local.
A situação se torna ainda mais complexa quando analisamos o modelo híbrido do presidencialismo brasileiro, adotado desde a promulgação de nossa última Constituição Federal. Com efeito, o presidencialismo com elementos de parlamentarismo cria uma forte dependência (ou negociação permanente) do Executivo para com o Legislativo. Trata-se de uma dependência não formal, já que a pauta do legislativo é sempre definida pelo Executivo. Mas o legislativo pode criar problemas ao prefeito, principalmente no que tange o orçamento municipal. Tanto na negociação de emendas e aprovação do orçamento do ano seguinte, quanto na fiscalização da execução orçamentária, que pode até mesmo gerar um processo de impeachment.
A pressão cotidiana do legislativo determina o dia-a-dia do prefeito e dá sentido ao Secretário de Governo, como negociador de plantão (diário) com os vereadores.
Ora, o que faria um candidato a prefeito pensar em introduzir mecanismos de democracia participativa se sabe que terá a ira dos vereadores?
Assim, se minha tese tem sentido, poderíamos aventar uma última hipótese: as eleições brasileiras não se constituem em palco de discussão da democracia participativa. São incompatíveis. A não ser que seja pauta de candidatos de tipo outsider. E este será o tema de um próximo artigo: a natureza de uma candidatura de tipo outsider no Brasil, como parece ter sido a de Gabeira, no Rio de Janeiro. Este tema parece relevante em tempos de vitória de Barack Obama. Mas é tema para outro artigo.
Rudá Ricci
Sociólogo, 46, Doutor em Ciências Sociais, Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. Co-autor de “A Participação em São Paulo” (Editora UNESP) e Dicionário da Gestão Democrática (Editora Autêntica)..
Este artigo nasceu de uma provocação numa das listas de discussão sobre democracia participativa. O economista Eduardo Marques, da coordenação do Fórum Paulista de Participação Popular escreveu um balanço das eleições municipais deste ano adotando como perspectiva a democracia participativa.
Segundo Marques, as eleições não teriam adotado o tema da democracia participativa. Nem mesmo entre os candidatos petistas, partido que adotou este tema como base do seu modo de governar. Este vínculo é tão direto que o autor da provocação sustenta:
“Deixando em segundo plano a radicalização da democracia e a participação popular, estamos atingindo todo o edifício do “modo petista de governar”, e com ele, toda a agenda política local inovadora que fomos capazes de implantar nas últimas décadas no Brasil.”
Marques vai além e avalia que nas eleições deste ano, principalmente as que foram ao segundo turno (30 municípios brasileiros), houve dificuldades em retomar o debate em torno da democracia participativa e da participação popular. Em muitos casos, a proposta do orçamento participativo, quando citada, não aparecia como aumento do poder de decisão do cidadão sobre o planejamento da cidade, se aproximando de uma mera consulta, um expediente secundário ou complementar de eixos mais importantes da ação do governante. Um acessório. Cita Porto Alegre como exemplo, onde o tema não gerou consenso entre os candidatos progressistas. Mesmo em São Paulo, onde a candidata Marta Suplicy, quando prefeita, adotou o orçamento participativo e duas estruturas de acompanhamento de formas participativas de gestão pública (a Coordenadoria de Participação Popular e a Coordenação do Orçamento Participativo) o tema sequer apareceu nos debates.
O autor vai além. Sustenta que no governo Lula houve abertura de diálogo com setores sociais que defendiam aprofundamento dos instrumentos democráticos do país. Mas o resultado foram ações marginais deste governo na direção da democracia participativa. Cita as audiências públicas do PPA 2004-2007 (que não ocorreram novamente na segunda gestão de Lula), a realização de conferências das cidades e aumento das conferências nacionais temáticas. Contudo, Marques admite que essas ações não eram centrais na pauta do governo federal. As audiências públicas e as conferências não lograram avanços, afirma. O mesmo teria ocorrido com os governos do Pará, Bahia e Sergipe, onde lideranças da democracia participativa do Brasil depositavam grandes esperanças. E sugere a mudança do eixo geopolítico das experiências participativas:
Fundamentalmente, os resultados mais expressivos da democracia participativa vieram do Nordeste, enquanto na porção Sudeste/Sul, este tema, quando entrou no debate, entrou pela “porta dos fundos”. (...) Em Porto Alegre, “berço da democracia participativa” assistimos ao seu enfraquecimento mais contundente. A vitória do PMDB/PSDB de Fogaça reforça dois movimentos: de um lado, a tática conduzida pelos setores conservadores em manter o OP de forma “rebaixada” - reduzindo poder de decisão da população e, portanto, seu protagonismo -, mas criando “falsos sinais” para setores populares e segmentos médios da população. De outro, a fragmentação da esquerda, mesmo no segundo turno, apontou para a falta de consenso em torno deste tema no campo progressista. Em Curitiba, a vitória do modelo de planejamento tecnocrático de cidade segue firme e forte com a vitória do PSDB. No Rio de Janeiro, dois candidatos de trajetória política errática não apresentaram formulações sobre o assunto, enquanto a esquerda, mais uma vez fragmentada, não foi capaz de organizar projeto algum para a sociedade. No mais, apenas uma idéia difusa de transparência na administração foi apresentada pelo candidato derrotado Fernando Gabeira. O eleito, Eduardo Paes, do PMDB/PSDB, é uma nulidade completa no tema. Em Belo Horizonte, o candidato vencedor Márcio Lacerda, patrocinado pelo PT e PSDB, deve priorizar o chamado “choque de gestão”, compromisso este que não tem como se misturar com “o choque de democracia”, a não ser mineiramente. De qualquer modo, seguirá o desafio de manter na agenda local o orçamento participativo, apesar da já visível redução em curso do seu poder de decisão popular e sua afinidade maior com a tecnocracia do planejamento. Em São Paulo, apesar do PT organizar, inicialmente, um grupo eleitoral de trabalho com vistas a formular ações no âmbito da democracia participativa, suas sugestões acabaram descartadas pelos “sistematizadores” do programa de governo e pela coordenação da campanha . O tema não foi motivo de agenda da candidata, nem tampouco de proposta pública de governo. De resto, a vitória do DEM/PSDB reflete o predomínio de uma aliança que vem eliminando ou sufocando os poucos canais de participação na cidade. Em Recife, o Secretário de Participação Popular, João da Costa, foi eleito pelo PT ainda no primeiro turno, sem a presença de Lula no palanque eleitoral. Apesar do tema da democracia participativa ganhar espaço no debate político-eleitoral e projetar Recife inclusive nacionalmente, a imprensa do centro-sul insistiu na tese de que o Prefeito João Paulo estaria elegendo um “poste” e que as cartilhas do OP distribuídas no início do ano poderiam cassar o mandato do prefeito eleito. Na verdade, o Prefeito João Paulo, ao indicar João da Costa para sua sucessão, colocou o tema no centro do debate, e colheu uma vitória impressionante. Para a população recifense, incorporada aos processos de participação popular, João da Costa já era muito conhecido e representava o centro de um projeto em curso que vem colhendo resultados positivos. Sem dúvida, as 10 mil cartilhas do OP impressas tiveram influência eleitoral muito menor do que a aparição de Kassab, para todas as TV´s, Rádios e Jornais, entregando um cheque para o Metrô de José Serra, às vésperas da eleição. O processo de participação popular em Recife, de forma estrutural, sem dúvida, foi fundamental para a vitória das forças de esquerda. Em Fortaleza, apesar das previsões pessimistas, a Prefeita Luizianne Lins foi reeleita em primeiro turno, sem a presença em palanque do Presidente Lula e concorrendo contra todos os caciques estaduais – PSDB/DEM/PPS. Nesta cidade, tal como em Recife, o Orçamento Participativo tem papel importante no Governo, e a re-eleição em primeiro turno representou a aprovação da população a esta forma de governar.
O que mais chama a atenção nas proposições analíticas de Marques é esta tese: a democracia participativa só teve relevância nas campanhas eleitorais do nordeste. Cita Recife e Fortaleza onde o tema da democracia participativa foi uma tônica dos prefeitos eleitos no primeiro turno.
Esta sugestão é relevante porque foi nesta região, justamente, onde tivemos a concentração de vereadoras eleitas. O Brasil, as mulheres conquistaram maioria de vagas para vereadoras em apenas 17 Câmaras Municipais. A maioria concentra-se no nordeste. Temos, ainda, outra novidade, no mesmo sentido. Somente 11 Estados possuem portais de transparência das contas públicas, onde o cidadão pode acompanhar as receitas e gastos dos governadores: 100% dos Estados do sul, 43% dos Estados do Norte, 33% dos Estados do nordeste, apenas um Estado do sudeste (25%), e um Estado do Centro-Oeste (25%, somando-se o Distrito Federal).
Uma região que até então era marcada pelo machismo e coronelismo teria sofrido uma reviravolta política e dali emergem as inovações mais progressistas do país?
Lembremos que a gestão de Edmilson Rodrigues, em Belém (hoje no PSOL, mas que era filiado ao PT, quando se elegeu prefeito em 1996 e 2000) procurou inovar na gestão da cidade, criando um sistema de congressos permanentes, sejam temáticos ou envolvendo segmentos sociais como jovens e índios. Lembremos, ainda, a experiência cearense de Icapuí, destaque em relação às formas participativas de gestão do município.
O tema da democracia participativa é, realmente, recorrente na política nordestina.
O que estaria ocorrendo em relação ao tema da democracia participativa ao longo de nosso país?
A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA BRASILEIRA COMO EXPERIÊNCIA INACABADA
Levantamento realizado pelo Projeto Democracia Participativa (UFMG) no período 2001-2004 revela que o orçamento participativo (OP) concentrava-se nos municípios do sudeste (46% dos casos) e sul (34% dos casos). O nordeste representava apenas 12% do total dos casos. O gráfico abaixo possibilita uma visualização mais abrangente deste fenômeno:
A primeira hipótese que emerge é justamente até que ponto o OP seria eficaz na mudança da realidade social dos municípios. Em outras palavras, justamente nas regiões onde o OP é uma experiência mais comum, esta proposição não entrou como diferencial na pauta das campanhas eleitorais deste ano. Assim, no nordeste o OP ainda seria uma novidade, não totalmente validada na prática.
Esta seria uma hipótese mais cética e negativista a respeito do impacto concreto desta experiência sobre a realidade local.
Um segundo dado produzido pela mesma pesquisa, sugere outra hipótese que pode ser significativa. Vejamos o gráfico que apresenta este outro dado:
O gráfico acima indica que a experiência do OP é mais comum em municípios abaixo de 100 mil habitantes, justamente onde não ocorre segundo turno nas eleições municipais.
Segundo dados do IBGE a região Sudeste do país é a que possui maior percentual de municípios com mais de 100 mil habitantes: 7,8%. A região é seguida pelo Norte do país (4,2%), Sul (4%) e Centro-Oeste (3,4%). O Nordeste é justamente a região onde o índice é menor: somente 2,3% dos municípios nordestinos possuem mais de 100 mil habitantes.
Assim, se o OP é um fenômeno que atinge mais fortemente municípios com menos de 100 mil habitantes, o nordeste emerge como campo fértil para sua proliferação.
Esta constatação pode indicar que a prática de OP é mais facilmente gerenciada em municípios de menor tamanho, onde a complexidade da malhar urbana e dos serviços públicos é também menor.
Mas o importante, no momento, é compreender o quanto esta experiência permanece inacabada e caminha pela política formal de maneira tortuosa, tal como sugere Eduardo Marques.
Aqui, gostaria de tomar outro rumo nesta análise. Sugiro um complemento, para além desta leitura do deslocamento geográfico do OP (e, possivelmente, das práticas participacionistas do Brasil). O complemento pode ser assim sintetizado: a formalização do sistema partidário brasileiro (cuja hegemonia programática está centrada no PT e PSDB) diminui a chance da democracia participativa vingar como agenda política dos principais partidos (e candidatos) do país.
Explico. Minha hipótese é que existe um conflito latente entre a representação que emerge do processo eleitoral formal e aquele que emerge dos mecanismos próprios da democracia participativa. Se este conflito é real, seria a explicação plausível, como autodefesa dos candidatos, deste tema se afastar das campanhas eleitorais. A democracia participativa, em tese, coloca sob suspeição ou exige confirmação da legitimação do eleito pelas vias tradicionais e formais da democracia representativa. Seriam, assim, dois processos de legitimação: o voto na urna e um segundo voto em plenárias (no caso da eleição de delegados do OP) ou fóruns (nos casos da eleição da representação da sociedade civil em conselhos de gestão pública) que geram uma forte polaridade de representação numa mesma cidade.
Em outras palavras, um candidato pela via formal que defende a democracia participativa tem que estar convencido que sua eleição estará subordinada a outros processos eletivos que sucederão sua posse. Talvez, até mais: terá que supor uma legitimação inacabada pela via representativa formal e tradicional.
No fundo, este candidato se apresenta como um vetor de mudança da legitimação política em seu município. Sabe que estará implantando um conflito implícito na política local.
A situação se torna ainda mais complexa quando analisamos o modelo híbrido do presidencialismo brasileiro, adotado desde a promulgação de nossa última Constituição Federal. Com efeito, o presidencialismo com elementos de parlamentarismo cria uma forte dependência (ou negociação permanente) do Executivo para com o Legislativo. Trata-se de uma dependência não formal, já que a pauta do legislativo é sempre definida pelo Executivo. Mas o legislativo pode criar problemas ao prefeito, principalmente no que tange o orçamento municipal. Tanto na negociação de emendas e aprovação do orçamento do ano seguinte, quanto na fiscalização da execução orçamentária, que pode até mesmo gerar um processo de impeachment.
A pressão cotidiana do legislativo determina o dia-a-dia do prefeito e dá sentido ao Secretário de Governo, como negociador de plantão (diário) com os vereadores.
Ora, o que faria um candidato a prefeito pensar em introduzir mecanismos de democracia participativa se sabe que terá a ira dos vereadores?
Assim, se minha tese tem sentido, poderíamos aventar uma última hipótese: as eleições brasileiras não se constituem em palco de discussão da democracia participativa. São incompatíveis. A não ser que seja pauta de candidatos de tipo outsider. E este será o tema de um próximo artigo: a natureza de uma candidatura de tipo outsider no Brasil, como parece ter sido a de Gabeira, no Rio de Janeiro. Este tema parece relevante em tempos de vitória de Barack Obama. Mas é tema para outro artigo.
Rudá Ricci
Sociólogo, 46, Doutor em Ciências Sociais, Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. Co-autor de “A Participação em São Paulo” (Editora UNESP) e Dicionário da Gestão Democrática (Editora Autêntica)..
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