25.3.09

Reflexões sobre uma oportunidade perdida

GENIVALDO UBINGE

Seria prudente escrever sobre algo ainda no calor da emoção? Falar tudo bem, pois a palavra o vento leva. Mas escrever significa registrar na história, comprometer-se. Será que é bom à minha imagem expressar o que sinto agora, horas depois da votação do veto ao dia de consciência negra como feriado? Diria palavras e tomaria posições que depois me arrependeria e teria que voltar atrás? Mas parece que voltar atrás, até mesmo em posições refletidas, hoje em dia, não é um grande problema. Então é melhor eu escrever, pois seria um modo de desabafar, mas não apenas isso, também uma oportunidade de registrar tudo o que penso sobre essa discussão, sobre os sujeitos envolvidos nela e suas posturas. E isso está bem refletido e já tenho uma opinião formada. Dividi-la penso ser meu dever, justamente por ser meu direito. Junto com essa opinião formada, ainda expresso minha esperança, o aprendizado que levo dessa votação e meu compromisso com as pessoas que sonham um mundo irmão.
Primeiramente um esclarecimento sobre de onde vejo e falo dessa situação, é uma fala a partir de uma classe, a trabalhadora popular, afinada não com as elites, e sim com os anseios do povo sofrido; é também uma fala que se inspira na tradição judeu-cristã de nossa cultura, afinal, ainda que não fale em nome da Igreja, pois ela é maior do que eu, mas falo a partir dela, de onde aprendi a ver o mundo, e nela que sirvo como sacerdote. Acho bacana e honesto dizer o tom que afina nosso discurso e ressinto disso nos órgão de imprensa, que me deixa no enigma do biscoito: os âncoras e comentaristas políticos são contratos pelos órgãos de imprensa porque afinam com seus discursos e de quem os mantém ou afinam seus discursos com seus patrocinadores por que são contratados? Mas esse é outro assunto...

Minha opinião sobre o dia da consciência negra como feriado

O que significa um feriado, um dia de celebração?
Não me entendam mal, não quero ferir a laicidade legítima do Estado, mas apenas recolher da referida tradição que herdamos uma inspiração para pensar num dia dedicado a algo. Duas passagens bíblicas são suficientes, uma do livro de Êxodo e outra do Deuteronômio.
O capítulo 5 de Êxodo narra-nos um episódio da libertação do Egito, que a bíblia sagrada africana titula “falhanço das conversações pacíficas” e se refere à “dureza de coração” do faraó e coorte egípcia diante da reivindicação de Moisés e Araão de que fosse concedido ao povo escravizado um dia de celebração de suas crenças. O motivo alegado pelo faraó: “Porque sublevais o povo, afastando-o de seus afazeres?” O medo é que esse dia favoreça a libertação do povo. De fato, esse é o caráter do dia de celebração: alimentar o anseio de libertação, criar a consciência coletiva em torno da própria opressão. E eis a resposta: “...são preguiçosos. É por isso que clamam, dizendo: vamos oferecer sacrifícios ao nosso Deus. Que se torne pesada a servidão sobre esses homens, para que se ocupem nela, e não dêem ouvidos a palavras mentirosas” (cf. Êxodo 5,1-23).
Deuteronômio, nos seus primeiros capítulos, retoma e medita os Mandamentos e preceitos de Deus dados ao povo para viver a sociedade livre, entre essas normas constam datas de festas e dias festivos. Essa retomada é concluída os versos 20 a 25 do capítulo 6, passagem intitulada “instrução dos filhos”, que visa preservar nas gerações novas a memória da escravidão e libertação do povo do Egito. Assim, compreendemos que as instituições de normas, cultos e datas têm caráter educativo e resgate da memória e identidade do povo para as novas gerações. Isso se torna mais cristalino se recuperamos um detalhe da celebração da Páscoa judaica : o membro mais novo da casa perguntava ao mais velho que presidia a janta: “o que celebramos hoje?” E o pai de família respondia com a narrativa da noite de libertação.
Aqui já deixo mais claro qual a importância duma data comemorativa: é um dia de memória, como um monumento, reflexão e profecia. Agora outras duas questões: o que faz os afro-descendentes merecedores dum de celebração em relação a outras etnias que “contribuíram na construção da nossa cidade”? Um feriado resolve ou o festival é melhor?
Comecemos pela mais simples. Não, um feriado não resolve. Mas já ajuda muito. Ajuda mais do que um festival. Seria como um ponto de chegada de longa luta dos movimentos negros em torno do resgate de sua história e consciência e, ao mesmo tempo, um ponto de partida para novas conquistas.
A outra questão também não é difícil, basta bom senso para perceber a diferença de tratamento das etnias européias e asiáticas vindas para cá e as africanas, trazidas para cá e as indígenas destruídas dá chegada do branco. E essa falta de bom senso para perceber essa diferença que me faz pensar em preconceitos e racismo na negação do feriado. Afinal, é comum preconceitos distorcerem a visão sobre algo. Outra coisa que obscurece a visão sensata da realidade é a ambição. Para refrescar a memória consideremos melhor a diferença: uma coisa é você está passando fome em país, sem perspectivas, a imigração é uma esperança e o país-destino um eldorado. Está noutro país, longe de casa é sempre difícil, mas aqui a motivação de vencer, e as condições para isso são favoráveis. Outra coisa é você ser aprisionado, vendido e escravizado trazido para este país, e permanecer nesta escravidão por 300 anos. E quando esta é abolida você não recebe nenhuma indenização, mas os fazendeiros que lhe escravizaram sim recebem indenizações, nenhuma política, nenhum incentivo. Nada. Não recebe nada. Será que 120 anos de história são suficientes para mudar essa história? Será que dá para dizer que negros e indígenas receberam neste país as mesmas condições de asiáticos e europeus?
Há outro elemento nesta história que é importante considerar. Ao longo do período da escravidão houve organizações fortes dos negros para libertarem-se, os quilombos são expressões dessas organizações. Entre eles, o de Palmares, do qual Zumbi fora o grande ícone. E quando chega a abolição, esta nos é vendida como fruto da bondade duma princesa branca, um presente. Esqueceu-se a luta, o papel e força dos negros para a sua liberdade. Por isso é tão importante resgatar 20 de novembro, morte de Zumbi dos Palmares como data símbolo das organizações e conquistas dos negros. Demorou para este nomear avenidas e praças, enquanto que o companheiro de profissão de seu algoz Jorge Velho, Raposo Tavares, escravizador de índios e mercenário como seu colega, há muitos anos é homenageado em Maringá. Exceção feita a de 1º de Maio, que é internacional, nenhum feriado cívico para as lutas e heróis populares, enquanto que as lutas e heróis das causas das oligarquias são abundantes: 7 de setembro, independência que nunca houve, 21 de Abril, a luta da defesa do ouro não para o Brasil e sim para suas elites, 15 de novembro o dia da república que massacra o pobre brasileiro de Canudos e de hoje. Agora Zumbi receberá uma praça, seu dia e sua causa ainda não merecem ser lembrados como os dias das causas elitistas!
Por isso penso que um garoto negro de 4 anos, almoçando com sua mãe no dia 20 de novembro poderia perguntar: “mãe, por que hoje é feriado?” e ela poderia responder com orgulho e esperança: “nos fomos tirados de nossas terras, casas e famílias, empilhados em navios, jogados ao mar, como animais vendidos, feitos escravos e assim permanecemos por 300 anos. Neste tempo negaram nossas culturas, tiraram nossas religiões. Mas continuamos cultuando nossos antepassados e Orixás nas suas esculturas e com seus ritos, entoávamos nossos lamentos e cantávamos nossa esperança. Surgiram líderes entre nós, organizamos fugas, construímos sociedades livres e igualitárias; mas seu ódio aumentava, o medo de perderem seus lucros os cegavam e enviaram expedições abençoadas por seus sacerdotes e, no dia 20 de novembro, mataram um dos nossos principais líderes, Zumbi dos Palmares. Pensavam que matavam nossa força e nossa luta com ele, mas nós resistimos, lutamos e estamos vencendo. E essa data é feriado para que nunca esqueçamos: fomos escravizados, humilhados e quase destruídos, mas unidos estamos nos libertando!”
Mas isso ainda não vai acontecer com uma criança negra de Maringá, 11 de nossos vereadores negaram isso a ela e esse orgulho à sua mãe.

As lições
As principais lições que tiro de tudo isso. Primeiro o papel da imprensa na formação da opinião pública é muito relevante e foi muito bem utilizado em favor do veto. Lembro que numa ocasião, bem início, vi uma enquete na RPC na qual a população mostrava-se levemente favorável ao feriado. Era preciso reverter isso. E foi feito. Jornal vinculando na primeira página o impacto para a economia da cidade, depois verificou-se que dados não eram seguros, tudo bem, já causou o efeito desejado. O discurso a favor do veto, todos os argumentos apresentados hoje na câmara, foram a linha de pensamento da CBN, mantido pelo seu principal comentarista político, a voz discordante não recebeu mesmo espaço nesta rádio.
Dos argumentos apresentados tanto na emissora, quanto na sessão da câmara hoje merecem destaque: “a discussão é mais ampla”, “um feriado não resolve”, “a semana de festival negro é mais eficaz”, “se feriado resolvesse bastaria criar o dia da saúde, da educação, do meio-ambiente e resolveríamos estes problemas crônicos”, “por que privilegiar os negros se várias etnias construíram Maringá, esse privilégio não acirraria o preconceito?”, “os legítimos representantes do movimento negro não querem o feriado”, “negro precisa mais de emprego do que feriado”, além é claro, os da sua inconstitucionalidade e do seu impacto econômico negativo. Estes todos, ou quase foram compartilhados por CBN e vereadores vetistas, a novidade hoje foram: a consulta a D. Anaur Battisti, com sua reposta negativa, sobre um possível caráter religioso da data, o impacto negativo imensurável de “mais um dia sem saúde, sem educação...” do Flavio Vicente e vacuado por Evandro Júnior. Opino agora sobre alguns desses argumentos.
Confesso que não compreendi muito bem a relevância de se negar ou afirmar caráter religioso à data. Mas se alguma relevância há, a opinião de D. Anuar não é de modo algum decisiva para definir isso, ele não é a única autoridade religiosa de Maringá, ele fala por uma das religiões presente aqui. Penso que se equivocou quem consultou e quem foi consultado. Aquele deveria consultar líderes das religiões de matriz africana (Candomblé, Umbanda etc) e este, quando consultado, deveria advertir aquele sobre isso. Por que não fizeram? Será que consideram a religião de matriz africana uma religião ou uma superstição?
Outro susto, digo outro porque o discurso de Manuel Sabrinho foi horripilante, foi a afirmação de “mais um dia sem educação” de Vicente e Junior, pensei que não ouvi direito, que quiseram dizer um dia sem escola, mas não, afirmaram que um feriado é um dia sem educação! Me assusta esse restringir a educação à sala de aula, ao ensino formal. Será que uma data comemorativa não é educativa? Aqui Flavio e Junior mostraram estreiteza de visão. Preocupante.
“Acirraria o preconceito contra o negro?” Na minha visão discursos preconceituosos acirram preconceitos. “Os legítimos representantes do movimento negro não querem o feriado, mas a semana festiva”, mas quem definiu os legítimos representantes? Em base em quais critérios? Acredito que há divergências de proposições e reivindicações no movimento negro, essas sim legítimas. Daí a legitimidade duma reivindicação ser definida no debate franco e transparente e não em que a representa. Aqui a legítima diversidade do movimento negro foi manipulada contra o próprio movimento.
Sou favorável que se proponha a instituição do feriado do dia da saúde, dia da educação, dia do meio-ambiente. A Julgar pelo exemplo do dia da consciência negra quem a ameaça de mais feriados não faça que apareça dinheiro para essas áreas também?
A lição mais importante para mim. Precisamos mesmo organizar os eleitores cristãos na escolhas de candidatos melhores, mais comprometidos com os pobres, preferidos de Jesus. Pessoalmente sou favorável uma campanha de conscientização dos fiéis por padres em torno de valores e não de nomes e partidos, permitindo uma exceção apenas quando a escolha deste ou daquele candidato ou partido for muito decisiva para as causas do povo. Ultimamente, nesta onda de descolorização das bandeiras partidárias, não achava justificável esta postura. Hoje na câmara mudei de idéia. Pude perceber claramente políticos comprometidos com as causas populares, outros com as causas elitistas e outros comprometidos consigo mesmos.

(*) Assessor eclesiástico na Arquidiocese de Maringá para as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s)

O título do artigo foi alterado posteriormente. Antes era "A lição de uma derrota"