25.3.09

Parecer sobre a Estação Rodoviária Américo Dias Ferraz

Comissão designada pela Promotoria Pública para estudos sobre a Preservação do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Município de Maringá.


Características da obra e sua significância cultural

O edifício em questão constitui um exemplar significativo da chamada “arquitetura moderna brasileira”, caracterizada pelo rigor construtivo e funcional, na qual predominam as linhas horizontais, os pátios internos e a inserção da obra num entorno de jardins. Ao mesmo tempo, sua arquitetura apresenta as limitações e imposições da edificação de uma construção desse porte em uma zona de colonização pioneira, como era o noroeste do Paraná na década de 1950. Por essa razão, o edifício apresenta traços característicos dessa arquitetura numa convivência harmoniosa com materiais característicos da região como a madeira empregada nos beirais, nas esquadrias e no piso, e na alvenaria com tijolos à vista, revestidos e elementos vazados.
O tratamento dispensado aos beirais, projetando-os para a rua, amplia o paramento da edificação e confere à obra um caráter monumental, definida pelos seus planos de base, corpo e coroamento. A horizontalidade da edificação é reforçada pela utilização de materiais diferentes nesses planos. A base da edificação emprega tijolo à vista no revestimento das fachadas, já o corpo da edificação apresenta paredes rebocadas e pintadas, e é composto pelas aberturas dos dormitórios, que reforçam a linearidade do conjunto. O coroamento é formado pelos beirais, consoles e revestimento de madeira sob os beirais (lambris), que arrematam a edificação e a projetam para a cidade. O tratamento dos pátios internos, com vedação em elementos cerâmicos vazados, nos remete a soluções características do modernismo no Brasil.
A significação histórico-cultural da edificação foi destacada inúmeras vezes, não só no meio acadêmico, mas nas diversas formas de comunicações veiculadas na cidade. Em 1964, no histórico do município apresentado pela administração local, a rodoviária era tida como “o coração da cidade canção” (Histórico 1964). Propagandas veiculadas nesse histórico destacavam os serviços oferecidos pelo “Restaurante Rodoviário, nos altos da estação, com uma cozinha de primeira” (idem). Nesse mesmo ano, o periódico O Jornal, se referia ao local com orgulho e destacava a movimentação diária que comportava, em um dia comum, “326 viagens, totalizando um movimento de 6520 passageiros” (O Jornal, 1964).
Antes de a Catedral tornar-se o marco referencial da cidade, era o edifício da rodoviária que se fazia presente nas propagandas e que, invariavelmente aparecia como o cartão postal da cidade. Aliás, as imagens da rodoviária, dadas como propaganda da cidade se repetiram anos a fio, como pode ser encontrado no anuário de Maringá, em seu número 6, publicado em 1968, no número 9, de 1972 e Revista editada pela Diocese de Maringá em comemoração aos 25 anos da criação do bispado. Em todos esses informes, e a rodoviária que aparece como símbolo da modernidade e motivo de orgulho para a população local.
A Prefeitura Municipal, que hoje se apresenta tão pouco satisfeita com a existência da edificação, no início da década de 1970 dizia, com orgulho, que pela rodoviária transitavam “de 10 mil a 12 mil passageiros por dia”; por isso a cidade vivia “a sua melhor fase de integração”.
Esse orgulho se repetiu em maio de 1972, ocasião da comemoração do jubileu de prata, ocasião em que a rodoviária era apresentada não só como um local por onde circulavam milhares de pessoas, mas sim como “lugar suntuoso, um dos maiores do Estado” (Maringá Ilustrada, maio de 1972).
A imagem positiva do local entrou pela década de 1980 e em 1984, na festa dos 37 anos da idade, “as comemorações foram marcadas por uma série de inaugurações, entre elas as obras de modernização da Estação rodoviária”. Nesse tempo o edifício ainda era considerado “bonito e funcional” (Tradição, maio 1984).
Mas, não só por ter sido considerado “bonito”, suntuoso ou funcional que esse imóvel tornou-se referência para a memória da cidade. Ele foi, desde sua inauguração, um dos primeiros pontos de impressão da cidade, a primeira imagem que as pessoas tinham, quando pisavam no chão de Maringá e, por isso mesmo, um lugar de confluência e sociabilidade de pessoas das mais variadas origens que circularam pela cidade, alguns para fixar residência, outros, viajantes temporários desse espaço.
Nesse sentido, a rodoviária municipal de Maringá tornou-se um marco fundamental para a história de Maringá, um local que nos fornece o testemunho de uma época, de sua cultura e das transformações pelas quais passaram tanto o edifício como a cidade.
Se hoje se apresenta como um espaço degradado, isso se deve ao abandono sofrido pelo local e requer medidas destinadas a requalificar o lugar devolvendo-o ao uso coletivo.

Aspectos programáticos que norteiam a defesa da conservação do bem em questão

Uma cidade se expressa por sua cartografia, pela organização espacial na qual seus habitantes circulam. Ela é também um o espaço que retém “um processo de acumulação de valores históricos e de práticas sociais vividas por seus moradores” e que produzem a sua identidade (Silva, 1994, p. 10). Para que essa identidade não se perca é necessário assegurar em sua história as marcas das experiências. Para que a modernização não implique na destruição dos referenciais e, com ele, na perda das experiências vividas, é necessário que os habitantes citadinos preservem suas referências culturais e resguardem suas raízes.
A cultura é esse elemento que dá identidade às sociedades humanas, aquilo que as unifica e as diferencia e a cultura engloba tanto a língua de um povo como suas histórias, seu modo de vestir, de se alimentar, de construir edificações (Souza Filho, 1999, p. 21).
É importante que se tenha claro a necessidade de preservar os meios pelos quais a cultura se expressa, de valorizar a singularidade, a criatividade peculiar da cultura humana em face da devoradora homogeneização de usos e costumes que a contemporaneidade busca impor.
Essa homogeneização pode ser vista, entre outras formas, na padronização arquitetônica, que cria lugares similares em todas as principais cidades e que leva as comunidades a perderem sua identidade.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, salienta a importância de se proteger os elementos da cultura que expressem a diversidade criativa dos povos. Para a UNESCO, essa criatividade se manifesta, ente outras, “nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural”. Assim, o patrimônio cultural é de fundamental importância para a memória, a identidade e a criatividade dos povos e a riqueza das culturas(UNESCO, 2007).
É com bases nesses enunciados acima que esta Comissão se posiciona para emitir seu parecer técnico quanto a importância da conservação da edificação que compreende a Rodoviária de Maringá, passível de ser tombada como patrimônio cultural da cidade.
O patrimônio cultural compreende “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (Art. 216 da CF de 1988).
Para proteger tais bens, o modo mais tradicional é o tombamento, mas a Constituição brasileira assegura, em seu artigo 216, § 1o, que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, também por meio de inventários, registros, vigilância, desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação.
Não ignoramos que no Brasil ainda são raros os casos em que é a população que pede a patrimonialização do bem. Isso porque “a autonomia de uma esfera cultural sequer faz sentido para alguns grupos da sociedade nacional” (Londres Fonseca, 2005).
A experiência histórica tem mostrado que é mínima a participação popular no processo de preservação do patrimônio cultural, fato que revela não só desconhecimento por parte da população acerca da importância da preservação desses bens, mas também a falta de preocupação do poder político com os bens culturais de interesse público.
Por isso mesmo, a norma processual tem sido levada adiante por meio de iniciativas de grupos que entendem ter um papel na defesa dos bens que compõem o patrimônio cultural e que resolvem ocupar o vazio deixado pela ausência de uma ação efetiva do Estado (municípios, governos estaduais e governo federal) nesse campo.
Por essa razão é que esta Comissão realizou seus estudos que resultam na defesa da edificação da Rodoviária de Maringá como um bem cultural da cidade, por vermos nela valores e significados particulares e distintos, que a diferenciam de outro tipo de objeto. Essa peculiaridade é que faz com que a mesma resulte única e insubstituível e, por isso mesmo, que haja a responsabilidade coletiva de protegê-la e conservá-la.
Nossas conclusões partem do princípio de que a cultura brasileira não é única, nem se resume ao eixo Rio – São Paulo, ou ao barroco mineiro ou nordestino e tampouco se expressa em “antigos conceitos de que os valores culturais a serem preservados são apenas aqueles das elites sociais” (MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: RT, 2001, p. 202.) 
Os valores que vemos na edificação e que justificam a defesa de sua conservação provêem de diversos campos. No que tange ao valor histórico, defendemos que a edificação retém a capacidade de testemunhar, de maneira coerente, o passado da cidade de Maringá. Sua existência expressa a criação singular de nossa sociedade, em uma determinada época, comportando elementos da nossa história e da nossa memória. O valor histórico também reside no testemunho deste edifício em relação às etapas evolutivas da cidade; nele se vê documentada uma das etapas da arquitetura da década de 1960, adotada em Maringá. Sua arquitetura nos proporciona informações sobre o período em que foi criada, e, se hoje ela é considerada obsoleta por alguns, é porque testemunha as mudanças de gosto e de usos próprios do passar do tempo. A época atual, dominada por uma ilimitada capacidade de reproduzir de modo mecânico a arquitetura, faz com encontremos na edificação da Rodoviária, a singularidade construtiva e as formas arquitetônicas aprovadas naquela conjuntura, pelos moradores da cidade.
Também nela podem ser encontrados valores rememorativos, que surgem do reconhecimento de seu pertencimento ao passado histórico, impresso nos signos estampados pelo tempo na edificação.
O valor de arte, bem sabemos, é um valor subjetivo, e estabelecido no momento presente e determinado segundo a capacidade de um objeto satisfazer às exigências estéticas do presente. Portanto, não existe um valor de arte absoluto, mas sim um valor relativo e esse valor de arte também se encontra na edificação, tanto em seus elementos construtivos que a tornam única do ponto de vista arquitetônico, quanto em sua inserção em um complexo paisagístico. Representante da moderna arquitetura brasileira, o conjunto edificado e paisagístico é dotado de valor artístico inerente às suas estruturas ambientais. Se o ‘valor de arte’ deve variar segundo o ponto de vista de quem o adota, é exatamente por não existir um valor de arte eterno, mas relativo e moderno, que a tarefa da conservação dessas estruturas deve, imperativamente, levar em consideração um valor futuro, desconhecido e imponderável.
Do mesmo modo, o valor cultural da edificação se traduz nas representações da rodoviária para os habitantes de Maringá. As múltiplas lembranças e as rememorações que a edificação estimula conformam a cultura do passado e do presente dessa cidade, no permanente processo de criação e recriação da identidade coletiva.
Por vermos nesse conjunto valores arquitetônico, artístico, histórico e cultural, pela sua existência, pelas histórias nele contidas, defendemos que essa edificação deva ser conservada como parte do patrimônio cultural da cidade.
A cidade de Maringá, apesar de ter apenas sessenta anos, exibe em seu espaço a procura incessante pela modernização, a mudança frenética de sua paisagem numa contínua ruptura com um passado tão recente. Maringá parece adequar-se à interpretação cunhada por Michel De Certeau de cidades que nunca aprenderam “a arte de envelhecer exibindo todo os seus passados. Seu presente se inventa hora a hora, no ato de deitar fora suas realizações prévias e desafiar o futuro” (De Certeau, 1994, p. 21).
Nesta cidade, quase não se encontram vestígios de seu passado tão próximo, uma vez que a transformação deita por terra muito do que é concebido como velho e que deve ser superado para a continuidade do que se entende por progresso. Parece haver, por parte dos habitantes de Maringá, uma participação mais contemplativa do que ativa no que diz respeito aos problemas da transformação urbana e da demolição de signos do passado. Uma participação que pode ser considerada pouco expressiva quando se buscam ações para a preservação dos bens que remetem ao passado, iniciativas que não raras vezes esbarram num contexto adverso, pois envolto com os ideais de progresso que se expressam em discursos nos quais o “novo” e o “moderno” aparecem como sinônimos da beleza e da superioridade.
Ao que tudo indica, tem havido em Maringá uma propaganda da modernização que escamoteia ou minimiza as perdas conseqüentes desse processo e, em contrapartida, exalta as qualidades positivas do fenômeno. Como conseqüência disso, o tema da preservação do patrimônio cultural não deixa de ser apropriado por determinados segmentos da cidade que não concordam com a democratização desse assunto para além dos circuitos técnicos dos gabinetes políticos e empresariais.
O não reconhecimento dos valores presentes em grande parte dos bens que configuram a cultura local tem dificultado a divulgação e a salvaguarda de elementos significativos da história e da memória do município. Não se pode perder de vista que há um legado em nosso meio cuja proteção e respeito é um exercício de cidadania.
Por essas razões, alem de defendemos a conservação da edificação da Rodoviária Municipal de Maringá, defendemos também que se criem, no município de Maringá, programas de educação capazes de propiciar e desenvolver a compreensão da importância da proteção do patrimônio cultural, e promover a maior sensibilização do público com aquilo que constitui a sua memória.
Tal argumento encontra fundamento em face da prática deste município em incessantemente destruir seu passado em nome de interesses que desdenham dos bens locais e insistem em não ver nos mesmos manifestações e testemunhos considerados relevantes para a história e a cultura da cidade.