25.4.09

New York Times - A crise do grande jornal americano

André Petry, de Nova York - Veja


Quando um livro revelando bastidores do New York Times chegou às livrarias nos anos 60, o resenhista do jornal abriu sua crítica à obra dizendo que se sentia como se estivesse escrevendo sobre mazelas do Vaticano para L’Osservatore Romano. “É um ritual de mortificação pública”, definiu. Na quarta-feira passada, deu-se algo parecido. No alto da página 6 do caderno de economia do Times, uma reportagem noticiou que o grupo proprietário do jornal teve um prejuízo de 74,5 milhões de dólares no primeiro trimestre do ano. A matéria era uma autoflagelação em dezessete parágrafos, mas desincumbiu-se da tarefa com garbo. Afirmou que o prejuízo decorreu da queda na receita publicitária em papel (28,4%) e na internet (8%), contextualizou, comparou e projetou números, e lembrou que o prejuízo de agora é brutalmente superior ao registrado no primeiro trimestre do ano passado, que ficou em 335 000 dólares. O conteú-do da reportagem é expressão de duas marcas do Times, uma legendária, outra tenebrosa: a excelência de seu jornalismo, que acaba de lhe render cinco Pulitzer, o prêmio mais prestigiado da imprensa americana, e a sua dramática situação financeira. Tão dramática que, aqui e ali, já se ouve uma pergunta que, pouco tempo atrás, era inimaginável: o Times vai fechar ou ser vendido?
Pelo mundo afora, os jornais sentem a agulhada de uma conjunção de fatores especialmente desfavoráveis: a recessão mundial, que reduz os gastos com publicidade, e o avanço da internet, que suga anúncios, sobretudo os pequenos e rentáveis classificados, e também serve como fonte – em geral, gratuita – de informações. Na Inglaterra, para sobreviver, os jornais querem leis menos severas para fusão e aquisição de empresas. Na França, o governo duplicou a verba de publicidade e dá isenção tributária a investimentos dos jornais na internet. Mas em nenhum outro lugar a tormenta é tão assustadora quanto nos Estados Unidos. A recessão atropelou os dois maiores anunciantes – o mercado imobiliário e a indústria automobilística –, e a evolução da tecnologia, com seu impacto sísmico na disseminação da informação, se dá numa velocidade alucinante no país. (Agora mesmo, o Twitter, misto de microblog com site de relacionamento criado em São Francisco, passou a ser usado por celebridades, e explodiu: captura 8 300 novos adeptos por hora.)
O binômio recessão-internet está produzindo uma devastação. O Rocky Mountain News, de Denver, no Colorado, encerrou um século e meio de vida em fevereiro passado, fato que mereceu manchete de primeira página do rival Denver Post. O Cincinnati Post, de 1881, fechou. O Philadelphia Inquirer, um dos vinte maiores jornais do país, com 180 anos de circulação, pediu concordata. A Tribune Company, que publica títulos como Los Angeles Times e Chicago Tribune, também pediu concordata. O histórico San Francisco Chronicle está à beira da morte. Se ele fechar, São Francisco será a primeira grande cidade americana a não ter um jornal local. O Seattle Post-Intelligencer, cujos repórteres eram confundidos no exterior com “agentes da CIA” devido ao “intelligencer” no nome do jornal, fechou sua versão impressa e agora só existe on-line. O Christian Science Monitor também encerrou sua operação em papel. Em San Diego, o San Diego Union-Tribune luta para sobreviver num ambiente inóspito: a cidade já conta com dois jornais virtuais e um deles, Voice of San Diego, não tem fins lucrativos. Vive de doações. O Boston Globe, do mesmo grupo do Times, está no abismo. Ou corta 20 milhões de despesas ou será vendido. Ou fechado.
No New York Times, a recessão e o estrago da internet se somaram a decisões duvidosas do grupo empresarial, como a compra do Boston Globe e a construção de uma suntuosa sede na Oitava Avenida, no coração de Nova York. Hoje, o grupo deve 1,1 bilhão de dólares. Já vendeu parte do novo prédio, por 225 milhões de dólares, e tomou emprestados 250 milhões com o bilionário mexicano Carlos Slim, dono da Claro e da Embratel no Brasil. Em 2002, o Times valia 5 bilhões de dólares e sua ação, 52 dólares. Hoje, seu valor caiu para 700 milhões e sua ação é negociada por volta dos 4 dólares – preço de sua edição dominical na banca. “Os analistas acham que, com a venda da sede e o empréstimo, o Times ganhou dois anos de sobrevida”, diz Penny Abernathy, que trabalhou com Arthur Sulz-berger Jr., da família que controla o jornal desde 1896. Penny, hoje professora na Universidade da Carolina do Norte, antecipou a VEJA uma análise de 23 páginas que preparou para apresentar num simpósio. No documento, ela discute quatro saídas para o Times. Só uma mantém o jornal como um negócio privado. As outras vão da criação de uma fundação à venda do título a alguma universidade. Só essa discussão, assim serena, dá uma medida dos novos tempos: parece que nem o Times, a bíblia da imprensa americana, há de fazer falta se sumir do mapa.
O fechamento de um jornal é o fim de um negócio como outro qualquer. Mas, quando o jornal é o símbolo e um dos últimos redutos do bom jornalismo, não importa quanto isso custe, como é o caso do Times, morrem mais coisas com ele. Morrem uma cultura e uma visão generosa do mundo. Morre um estilo de vida romântico, aventureiro, despojado e corajoso que, como em nenhum outro ramo de negócios, une funcionários, consumidores e acionistas em um objetivo comum e maior do que os interesses particulares de cada um deles. Desde que os romanos passaram a pregar em locais públicos sua Acta Diurna, o manuscrito no qual informavam sobre disputas de gladiadores, nascimentos ou execuções, os jornais começaram a entrar na veia das sociedades civilizadas. Mas, para chegar ao auge, a humanidade precisou fazer uma descoberta até hoje insubstituível (o papel), duas invenções geniais (a escrita e a impressão) e uma vasta mudança social (a alfabetização). Por isso, um jornal, ainda que seja um negócio, não é como vender colírio ou fabricar escadas rolantes. A Áustria orgulha-se de ter o diário mais antigo do mundo, o Wiener Zeitung, de 1703. A Suécia lamentou quando, há dois anos, o Post-och Inrikes Tidningar, o mais antigo semanário do mundo, de 1645, passou a existir só na internet. Nos EUA, a agonia dos jornais tem impacto especial pelo papel histórico que tiveram na construção da democracia e na introdução de uma relíquia constitucional – a garantia da liberdade de expressão, que ocupa lugar vital nos valores americanos. O dramático é que muitos leitores não parecem incomodados com a ameaça sobre os jornais. Uma pesquisa mostra que 42% dos americanos sentiriam “pouco” ou “nada” se seu jornal fechasse.
“Vivemos a mais grave crise da história da imprensa”, diz o veterano editor Alan Mutter, autor do influente blog Reflections of a Newsosaur – algo como “Reflexões de um Jornassauro” –, em que analisa o impacto das novas tecnologias sobre os jornais. “Mas eu não acredito que o Times vá fechar.” Especula-se que o Times poderia operar só na internet de segunda a sábado, preservando em papel a edição dominical – nela, anúncio avulso em cor e página inteira custa 270 000 dólares. Mas ninguém descobriu como viabilizar-se financeiramente na internet, arrecadando o bastante para bancar um jornalismo de alto padrão. O site do próprio Times é um bom exemplo. É uma pérola do jornalismo on-line. Com 20 milhões de visitantes por mês, oferece perfis e gráficos interativos, tem um arquivo com matérias do século XIX, áudios e vídeos de qualidade irretocável e oferece links até para a concorrência. Mas não se sustenta. Para mandar repórteres ao Darfur, à Amazônia ou ao Tibete, o Times gasta 200 milhões de dólares por ano. Sai caro, mas talvez isso esteja ficando desimportante aos olhos de um público aparentemente satisfeito com a qualidade – deplorável – do que se produz na internet. A febre atual nos EUA é o “jornalismo cidadão”, já com mais de 450 blogs. O “jornalismo cidadão” é feito por qualquer um que tenha conexão com a internet e seja alfabetizado (ou quase). É até divertido. Mas será pior um mundo em que iniciativas amadoras substituam o jornalismo profissional na busca, seleção e difusão de informações de qualidade.
O Times está se contorcendo para manter o padrão do seu trabalho. “Já cortamos na cobertura nos arredores de Nova York”, diz Bill Keller, o diretor do jornal. “Mas o grosso da nossa cobertura, que é a reportagem no exterior, em Washington, em economia, na cultura, isso não foi afetado. A empresa trabalha para preservar o jornalismo.” Quem acha que a internet é o nirvana da democratização da informação precisa lembrar que o Google tem seu quase monopólio – e divulga notícias de “25 000 fontes” sem pagar um tostão por elas. E quem acha que a internet, por sua natureza virtual, dissemina mais informação e eleva a cultura das massas precisa ir devagar. O site do Times, com seus 20 milhões de usuários, é o maior site de jornal do mundo. Mas, em média, seus visitantes ficam no site 35 minutos – por mês. Ou 1,10 minuto por dia. Não dá tempo de ler nem um gibi. É como se os internautas passassem numa banca, dessem uma olhada nos títulos expostos e fossem embora. Sem ler nada. É perturbador.