24.5.09

Apelação cível - Dr. Camargo

APELAÇÃO CÍVEL N. 329.900-3, DA COMARCA DE MARINGÁ, 2.ª VARA CÍVEL

PRIMEIRO APELANTE: PAULO ROBERTO JARDIM NOCCHI

SEGUNDA APELANTE: EXIT COMÉRCIO DE MATERIAL HOSPITALAR LTDA.

TERCEIRO APELANTE: O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ

APELADOS: PAULO ROBERTO NOCCHI E OUTROS

RELATOR: JUIZ CONVOCADO ALBINO JACOMEL GUÉRIOS


IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. ALEGAÇÃO DE FATOS RELEVANTES PELOS RÉUS. NULIDADE DA SENTENÇA. ARGUIÇÃO DE NULIDADE DA CITAÇÃO NÃO COMPROVADA. PRIMEIRA E SEGUNDA APELAÇÃO PROVIDAS EM PARTE. TERCEIRA APELAÇÃO PREJUDICADA






Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 329.900-3, da Comarca de Maringá, 2.ª Vara Cível, em que são apelantes e apelados Paulo Roberto Jardim Nocchi e outros.
Acordam os dois Desembargadores e o Juiz Relator Convocado da Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, por unanimidade de votos, em prover em parte as duas primeiras apelações e em julgar prejudicada a terceira apelação, nos termos deste julgamento.


§ 1. O Ministério Público do Estado do Paraná, em ação de improbidade administrativa, atribui a Paulo Roberto Jardim Nocchi o cometimento de atos irregulares em licitação promovida pelo Município de Doutor Camargo, tais como fracionamento do procedimento licitatório, compra de materiais hospitalares em volume superior ao que o Município exigia etc., e especialmente o enriquecimento ilícito do primeiro réu, que teria recebido em sua conta-corrente um cheque destinado para pagamento do preço das compras.

Citados, os réus contestaram, alegando, o primeiro e a última ré, também, a inexistência do ato de enriquecimento ilícito, negando o primeiro réu, especialmente, ter mandado ou concordado com o depósito em sua conta.

O MM. Juiz julgou em parte procedente a demanda, reconhecendo a licitude da licitação mas comprovado o enriquecimento ilícito.

Recorrem o primeiro e a última ré argüindo, ambos, o cerceamento do direito à prova, por ter o julgamento antecipado da lide cerceado-lhe o direito à prova do desconhecimento ou voluntariedade do depósito considerado na r. sentença.

Recorre também o Ministério Público.

Os recursos foram contra-arrazoados.
Manifestou-se a Procuradoria-Geral de Justiça pelo provimento apenas do recurso do Ministério Público.

É o relatório.

§ 2. Sem embargo do número de atos supostamente ilícitos atribuídos aos co-réus, o MM. Juiz entendeu que somente um único comportamento seria contrário à Lei de Improbidade Administrativa: o enriquecimento ilícito do primeiro apelante, para o qual teria concorrido a segunda apelante:

Contudo, assiste razão ao autor quando afirma ter havido enriquecimento ilícito do primeiro requerido, então Prefeito Municipal. Ficou comprovado que um dos cheques utilizados para o pagamento das empresas vencedoras na licitação foi creditado em sua conta bancária, para a quitação de dívidas. A utilização do cheque pelo requerido PAULO ROBERTO JARDIM NOCCHI foi comprovada por ofício expedido pelo Banco do Estado do Paraná de Doutor Camargo que, expressamente, informou que o título foi debitado em benefício dele...

Por sua vez, a requerida EXIT - COMÉRCIO DE MATERIAL HOSPITALAR LTDA., a quem o título era destinado nominalmente (fls. 230), induziu e concorreu para a prática do ato de improbidade, tendo em vista que transferiu ou “doou” o título ao então Prefeito, devendo, portanto, responder pelo ato praticado, em conformidade com o art. 3.º da Lei 8.429/92 (fls. 590 e 591).

Essa questão é retomada em segundo grau, impugnada pelos dois primeiros apelantes especialmente sob o aspecto do cerceamento do direito à prova, ao lado da nulidade da citação da segunda apelante (objeto apenas -- a questão da nulidade do ato citatório -- da apelação de Exit Comércio de Material Hospitalar Ltda.).

O contraditório, ou a efetiva participação dos litigantes no processo influindo no seu curso e no julgamento da lide, depende essencialmente do direito à prova, relação (entre o direito à prova e o contraditório) que se explica pelo próprio conteúdo do processo: (i) as normas jurídicas incidem sobre fatos, têm um suporte fático; (ii) como o processo serve precipualmente à aplicação do Direito ao caso concreto, (iii) o preenchimento do suporte fático deve ser de regra demonstrado em juízo; e (iv) como a norma incide sobre fatos e apenas incidirá se os fatos ocorreram, a parte somente poderá convencer o juiz da sua razão se também puder demonstrar que as suas alegações de fato são verdadeiras, movimento que coloca o direito à prova dentro do princípio do contraditório, ao menos para os fatos relevantes ao julgamento do mérito -- e como conclusão: assegurar às partes apenas a alegação sem assegurar-lhes a possibilidade de produzir provas importa, em essência, negar-lhes a participação no processo, precisamente porque, repetindo, a participação pressupõe a possibilidade de influir no convencimento do magistrado e isso somente é possível pela alegação e também pela prova dessa alegação.

Nesse sentido:

E não é em vão que se salienta o direito à prova no quadro das garantias da ação e da defesa. Já se notou que a atividade probatória representa induvidosamente o momento central do processo: estritamente ligada à alegação e à indicação dos fatos, visa ela a possibilitar a demonstração da verdade, revestindo-se, portanto, de fundamental importância para o conteúdo do provimento jurisdicional.

É evidente, portanto, que o concreto exercício da ação, tendo por escopo influir sobre o desenvolvimento e o resultado do processo, fica essencialmente subordinado à efetiva possibilidade de se representar ao juiz a realidade do evento posto como fundamento da ação ou da exceção: ou seja, à possibilidade de a parte servir-se das provas1 e

Dentro do contraditório existe o direito à prova. Quanto a isso não há a menor dúvida, porque é evidente que de nada valeria contradizer, de nada valeria defender-se numa atitude passiva, se não houvesse uma real e efetiva possibilidade de influir sobre o convencimento do juiz mediante a produção de elementos probatórios2.

E inserindo-se o contraditório na cláusula do due process of law, assegurada constitucionalmente, a sentença proferida em ofensa ao direito à prova será em princípio nula, irremediavelmente nula. Entretanto, o direito à prova não tem a natureza de um direito absoluto, irrestrito (aliás, como nenhum outro direito): não há um direito à prova de qualquer fato, mas apenas de fatos que, além de controvertidos, sejam relevantes e determinados, e por uma razão simples: o processo tem caráter instrumental, característica comum a todos os institutos processuais (seria impossível afirmar a instrumentalidade do processo sem também afirmar a instrumentalidade dos institutos e atos processuais, visto que aquele nada mais é do que o aspecto dinâmico destes): ou “verifica-se que o princípio da instrumentalidade se faz presente em todos os seguimentos do iter procedimental”3, servindo todos, o processo e os seus institutos, à realização de certos escopos, mais especificamente: à correta atuação do direito material, à pacificação com justiça etc.; conseqüentemente: a) se esses são os objetivos do processo, b) todos os institutos processuais coordenam-se à atuação do direito material, à pacificação com justiça etc.; c) e como o juiz aprecia fatos, aplicando-lhes a norma jurídica correspondente, d) somente os fatos que interessam à lide devem ser considerados e, portanto, alegados e provados4.

Essas noções definem o seguinte critério para o exame da nulidade da sentença por cerceamento do direito à prova em cada caso concreto: haverá nulidade toda vez que as partes alegaram fatos relevantes, controvertidos e determinados e o juiz julgar antecipadamente a lide ou indeferir prova pertinente e relevante, o que reconduz ao exame da pertinência e relevância de outras provas a serem produzidas, e mesmo à possibilidade da sua produção.

Mais um ponto relevante: a inverossimilhança da alegação ou a falta de probabilidade do fato alegado não constitui critério para o indeferimento de provas. Por mais veemente que seja a prova apresentada pela contraparte ou por mais inverossímil que seja a alegação em contrário a esse fato, o juiz, só por essa razão, não poderá indeferir as provas requeridas pela parte que se contrapõe à prova já apresentada ou alega um fato em princípio inverossímil:

“Não é lícito às partes”, escreve igualmente o citado processualista, “oporem a inverossimilhança de um fato ou a impossibilidade de prová-lo, para impedirem um meio de prova.

Nem pode o juiz, por tais fundamentos, negar a prova, mesmo que do contrário esteja convencido.

A regra geral do direito probatório se forma de dois princípios: 1.º) a liberdade de defesa é garantida pela liberdade de ministrar nos limites da lei a prova necessária; 2.º) a convicção do juiz (salvo preceito especial) é o resultado da avaliação equânime e completa de todos os meios de prova fornecidos pelas partes.

Isto posto, dizer inverossímil uma prova ou impossível o resultado por ela visado é substituir o arbítrio à garantia processual devida aos litigantes. Viola por completo o dever de ofício o magistrado que, por estar convencido do contrário, não admite uma prova”

...

A conclusão, pois, deve ser a regra sem exceção da liberdade da prova, sem embargo das aparências de inverossimilhança dos fatos a provar. Afinal, proceder-se-á ao exame de todo o material coletado5.

No caso dos autos, a partir dessas noções, pergunta-se: há fatos relevantes argüidos pelos apelantes? Tais fatos são impossíveis de prova ou os meios de prova requeridos são impertinentes?

O primeiro apelante alegou desconhecer o depósito efetuado em sua conta-corrente. Disse não ter autorizado ninguém a assim proceder. Por igual a segunda apelante, que insiste em dizer que não autorizou o depósito do cheque por ela recebido por ocasião da sua contratação na conta do co-apelante.

Por certo que essas alegações são relevantes. Não confirmado o conhecimento do depósito do cheque pelo primeiro apelante ou não comprovado ter sido a segunda apelante, por seus prepostos, a pessoa que determinou o depósito, na falta do elemento subjetivo do enriquecimento ilícito, a demanda não procederá. Alguém poderá sustentar que, como o depósito na conta-corrente está comprovado documentalmente, a alegação do primeiro apelante negando o seu envolvimento nos fatos não é verdadeira. Aceitar essa asserção, sem se conceder aos réus oportunidade alguma de contraprova, implicaria: i) em se alijar os apelantes da instrução probatória, negando-lhes o direito à prova e o direito ao contraditório, em evidente afronta à cláusula constitucional do due process of Law; ii) em se considerar como inverossímil ou impossível a contraprova, em ofensa às mencionadas regras de direito probatório; iii) em se julgar a causa com apoio exclusivamente em um único indício, do qual se pode inferir a possibilidade da conclusão a que o MM. Juiz chegou, sem se conseguir alcançar um juízo de probabilidade suficiente, que requer um número maior de elementos convergentes.

Enfim, por mais forte que se possa qualificar a inferência indiciária ou por mais que se possa afirmar a inverossimilhança da alegação do primeiro apelante de não ter recebido os valores, não se pode escapar à conclusão de que o julgamento antecipado da lide feriu a garantia constitucional do devido processo legal.

Portanto, a sentença é nula.

Todavia, se nesse ponto tem razão a segunda apelante, e por igual o primeiro apelante, o mesmo não se dá com a alegação de nulidade da citação daquela.

Pelo que consta dos autos, a carta de citação foi endereçada à Avenida Roberto Koch, 1.477, bloco 4, AP 42, Londrina, o mesmo endereço que aparece na procuração de fl. 611 como sendo a sede da segunda apelante.

E com o provimento das duas apelações, a terceira apelação, do Ministério Público, resulta prejudicada.

§ 3. PELO EXPOSTO, a Câmara, por unanimidade, provê em parte as duas primeiras apelações para anular a sentença e parte do processo, para que este tenha prosseguimento a partir da instrução probatória, possibilitando-se às partes a produção de provas orais, prejudicada a terceira apelação, do Ministério Público.

Participaram do julgamento os Senhores Desembargadores Rosene Arão de Cristo Pereira (Presidente - Revisor) e Leonel Cunha, que acompanharam o voto do Relator.

Curitiba, 18 de maio de 2009.



Albino Jacomel Guérios
Juiz Relator Convocado


1 GRINOVER, Ada Pellegrini Grinover, Novas tendências do direito processual, 1.ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 19.
2 GRINOVER, Ada Pellegrini, O sistema de nulidades processuais e a Constituição, Livro de Estudos Jurídicos, n. 6, Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 1993, p. 158.
3 THEODORO JÚNIOR, Humberto, Fraude contra credores, A natureza da sentença pauliana, Del Rey, 1996, p. 41.
4 SANTOS, Moacyr Amaral, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 2º v., 10.ª ed., São Paulo: Saraiva, 1985, p. 335 a 336.