11.5.09

Sentença - Operação Camaleão

Processo nº 0210/2008 (ação civil pública)
Ministério Público do Estado do Paraná vs Tacma - Tribunal Arbitral e Conciliação de Maringá, Jamsul - Juizado Arbitral de Mediação e Conciliação empresarial e comercial do Mercosul e Câmara de Conciliação Mediação e Juizado Arbitral de Maringá.
Sentença - Empresas de cobrança que fingem ser tribunais e juizados arbitrais, e apresentam seus prepostos como juízes e oficiais de justiça, denominando seus atos de audiências e sentenças, negando aos consumidores direito à informação sobre a facultatividade da conciliação de do compromisso arbitral. Violação aos princípios do direito do consumidor e da Lei Federal nº 9307, e desvio da função social da empresa. Extinção decretada, bem como nulidade de todos os acordos presididos e arbitragens efetuadas.
Alega a inicial, em síntese, o seguinte: a) os réus, pessoas jurídicas de direito privado, instalaram-se nesta cidade a pretexto de funcionarem para os fins e sob o amparo da Lei Federal nº 9307/96, todavia desviaram-se gravemente das normas legais, pois sua atividade, na prática, era a de empresas de cobrança disfarçadas sob aparência e nome de juízos arbitrais; b) os três réus usavam de tática de mercado agressiva para angariar clientes, comerciantes credores de cheques sem fundos e outros créditos, praticando, em seguida, constrangimentos e engodos para forçarem os devedores a pagar, ou celebrar acordos; c) os devedores eram intimidados pelos réus, que encaminhavam emissários com notificações ameaçadoras, fazendo-se passar por oficiais de justiça, e constrangendo os devedores afirmando, entre outras coisas, que estavam intimados para audiência, que seriam julgados à revelia se não comparecessem, que o comparecimento era obrigatório sob pena de serem julgados verdadeiros os fatos alegados pela parte requerente; d) não bastasse isso, os consumidores-vítimas ainda eram “intimados” pelos “oficiais de justiça” dos réus sem direito a saber quem era o reclamante/requerente, como forma de aumentar o temor das vítimas; e) os três réus ainda intimidavam, constrangiam e iludiam os devedores que compareciam às ditas “audiências”, pois seus prepostos se faziam passar por juízes, não permitiam aos consumidores exercer defesa, não esclareciam a facultatividade do compromisso arbitral e forçavam assinaturas dos devedores em acordos e termos de compromisso dando a entender, por meios verbais e atitudes, que se não assinassem teriam “problemas com a Justiça” ou sofreriam conseqüências prejudiciais como apreensão de veículo ou divulgação do fato no ambiente de trabalho; f) no caso específico do segundo réu, seu preposto, Antônio Carlos Pomim, se apresentava nas “audiências” como juiz e dizia que se o consumidor-vítima não assinasse o “acordo” ele, juiz, daria decisão em prol do credor e com força de “título executivo”; g) os três réus se intitulavam “tribunais” e “juizados”, intitulavam seus atos abusivos de “audiências” e “sentenças”, e seus prepostos se apresentavam como “juízes” e “oficiais de justiça”, embora fossem só empresas de cobrança comprometidas com os interesses dos credores contratantes, para se fazerem passar por autoridades judiciárias, como forma de confundir os consumidores-vítimas e intimidá-los; h) perante os comerciantes que angariavam como clientela os três réus faziam-se passar por “juizados de pequenas causas”, visando confundir os clientes em potencial dando um ar oficial e judicial à atividade de cobrança que forneciam; i) os três réus, mediante essas práticas, desviaram-se grave e dolosamente do regramento da lei 9307, posto que forçavam a aceitação da arbitragem contra a vontade dos consumidores, e enganando-os acerca da obrigatoriedade dos “acordos” que firmavam e das “intimações” que recebiam, fazendo-se passar por autoridades judiciárias; j) para obter clientes e credibilidade os três réus fizeram circular publicidades dúbias e enganosas, onde afirmavam falsamente que suas decisões valeriam com eficácia de sentenças judiciais, constituindo uma “justiça alternativa”; k) a verdadeira atividade de empresas de cobrança que os três réus exerciam, sob a fachada enganosa de “tribunais arbitrais”, se confirma pelo fato de os comerciantes credores e contratantes dos serviços de cobranças nem mesmo compareciam às “audiências”, pois funcionários dos próprios réus serviam, naqueles atos, ora como “juízes”, ora como representantes/prepostos do credor; l) ademais, nos “acordos” que forçavam os consumidores a assinar, os três réus frequentemente faziam incidir correção monetária e juros acima das taxas legalmente permitidas; m) para obter lucro, que suas atividades de empresas de cobrança visavam, os três réus cobravam “custas”, “honorários” e “taxas de notificação”, sempre arcadas pelo consumidor lesado; n) como empresas de cobrança que eram, os três réus promoviam, depois de celebrados os “acordos”, rigoroso controle dos pagamentos efetuados pelos consumidores, inclusive efetuando cobranças verbais ou por escrito em caso de atrasos; o) assim os réus violaram vários princípios do sistema de defesa do consumidor, notadamente realizando cobrança abusiva de dívidas, e desrespeitaram reiteradamente a Lei Federal nº 9307, violando o direito de livre opção do consumidor pela arbitragem, o direito de livre escolha e recusa do árbitro, e o princípio da imparcialidade do árbitro/conciliador. Pediu a tutela jurisdicional para a) decretar a extinção das pessoas jurídicas rés, b) declarar nulos todos os acordos supervisionados e sentenças proferidas pelos réus, c) condenar os réus a publicar a sentença em jornal local e d) condenar os réus nos encargos da sucumbência.
Foi deferida a antecipação da tutela jurisdicional. Citados os réus, o primeiro réu não contestou. O terceiro réu reconheceu que atuou ilegalmente, não impugnou a versão da inicial, disse que já encerrou suas atividades e que sua titular “caiu no conto do vigário”, enganada por curso que ensinava a fazer o que fez, supondo que a lei permitia, o que levava pessoas de boa-fé a “sair criando câmara por aí”, com a conivência do Ministério Público que devia proceder uma fiscalização atenta que “bloquearia na fonte a pipocação de câmara em todo território nacional”. Pediu a improcedência “da denúncia”. O segundo réu contestou dizendo, em suma, que a Lei Federal nº 9307 é “honrosa”; a arbitragem e a conciliação são legais e maravilhosas; a sala onde o réu atuava não era escura; não há crime de formação de quadrilha com menos de 4 agentes; o Ministério Público devia buscar a justiça e não acusar pessoas; o promotor signatário da inicial se contradisse na entrevista que deu à rádio CBN; as notificações que mandava aos consumidores eram extrajudiciais; a testemunha Almerinda elogiou a “prestatividade” do réu; esta ação é fruto das denúncias promovidas pelo Tacom com intenção de tirar os réus do mercado. Postulou a improcedência do pedido inicial.A parte autora manifestou-se sobre a contestação, reiterando os argumentos da inicial.Anunciado o julgamento antecipado, não houve recurso. É o relatório
Quanto ao primeiro réu, não contestou. Trata-se de ação versando sobre direitos patrimoniais disponíveis, entre partes capazes, onde não incide nenhuma das hipóteses excepcionais do art. 320 do CPC. O réu, citado válida e pessoalmente, não se defendeu. Aplicam-se, em toda extensão, os efeitos previstos nos arts. 319 e 330, II, do CPC: presumem-se verdadeiros os fatos alegados pelo autor, e cabe o julgamento antecipado. Não há circunstâncias constantes dos autos que justifiquem formar o livre convencimento em sentido diverso, ou justifiquem encetar de ofício diligências probatórias. Considerados verídicos os fatos narrados na inicial, e não havendo qualquer prova ou indício que enfraqueça a presunção de veracidade decorrente da confissão ficta, a conseqüência jurídica é aquela pretendida pelo autor. Quanto ao terceiro réu, confessou expressamente sua atuação ilegal, não rebateu nenhum dos fatos alegados na inicial, e admitiu que já encerrou suas atividades. A alegação de falta de dolo é descabida, porque não é possível que alguém, por mais leigo e mal informado que seja, não perceba a ilicitude dos fatos relatados na inicial, e confessados pelo réu. Quanto à defesa do segundo réu, anoto, por primeiro, que ele não impugnou especificamente nenhum dos fatos alegados na inicial. Razão porque confessou, tacitamente, a veracidade daqueles fatos todos. Por isso a colheita de mais provas tornou-se desnecessária, porque a confissão, aliada à farta documentação que instrui a inicial, é fundamento suficiente para procedência do pedido. Diga-se, a bem da verdade, que o segundo réu contestou um, só um, dos fatos de que fala a inicial: diz a contestação que o corredor onde ficava a sede do réu não era escuro, era bem iluminado. Que seja. Não se percebe qual a relevância disso para o julgamento. Quanto aos demais argumentos do segundo réu, ou são tão irrelevantes quanto a questão da iluminação do corredor, ou são improcedentes. Não é a Lei Federal nº 9307 que está em julgamento, nem estão em julgamento os institutos da conciliação e da arbitragem. Quase toda a resposta do segundo réu é gasta em palavrório supérfluo para demonstrar que a lei 9307 é ótima, e que a arbitragem e a conciliação são legais e maravilhosas. Nada disso está em discussão. A conduta do réu é que é objeto do julgamento, mas ele, por razões óbvias, prefere discutir outras coisas, mais fáceis de explicar que os abusos do requerido. Não há crime de formação de quadrilha com menos de 4 agentes, como todos sabem. E isso não tem qualquer interesse para este julgamento, como o réu devia saber. Da mesma forma não vem ao caso discutir o papel e atribuições do Ministério Público. Basta saber – e isso nem foi contestado – que propor ações como a presente cabe naquelas atribuições. Não faz nenhuma diferença o que foi que o delegado ou o promotor signatário da inicial disseram à imprensa sobre este caso. Para o julgamento leva-se em conta as provas dos autos, e não os comentários da imprensa. Se as entrevistas foram fiéis ou não é tema que não cabe neste processo. Diz o segundo réu que as notificações que mandava aos consumidores eram extrajudiciais. Claro que eram. Como poderiam ser judiciais? A inicial nunca disse outra coisa. O que disse a inicial (e nenhum dos réus, nem o segundo réu nem os outros, contestaram) é que as notificações eram entregues por pessoas que diziam ser “oficiais de justiça”, e que intimidavam os destinatários a) negando-se a dizer quem era o reclamante, b) afirmando falsamente que se tratava de “intimação” para “audiência”, c) afirmando falsamente que o comparecimento era obrigatório e que o faltoso seria “julgado e condenado à revelia”. Não faria diferença se o título e o teor do papel entregue fossem comedidos e isentos de falsidade: a atitude dos portadores, e o que eles expressavam verbalmente, era mais que suficiente para intimidar, coagir e violar francamente todas as normas de que fala a inicial. E os segundo réu, assim como os demais réus, não negou em ponto algum que os seus prepostos agiam tal como relatou a inicial. Por outro lado, basta ler o papel de f.101, que o segundo réu invoca como exemplo de suas “notificações extrajudiciais”, para ver que o texto é capcioso, enganoso, intimidatório e mentiroso. Diz ali que se o notificado não comparecer isso levará à “emissão de laudo”, coisa que nem o juiz entende o que poderia significar, mas que, pelo tom pomposo e fingidamente oficial, intimidaria qualquer leigo. E se trata de uma mentira, pois que o laudo arbitral só poderia ser emitido se houvesse o compromisso arbitral, coisa que, como é sabido, não havia. Adiante, o mesmo papel ameaça com revelia e confissão ficta o notificado que faltar à “audiência”: outra mentira com evidente finalidade coativa, e capaz de enganar e intimidar o leigo. Se a testemunha Almerinda elogiou a “prestatividade” do réu na condução de alguma atividade, isso em nada modifica a certeza de que os fatos relatados na inicial são verdadeiros, e bastam para levar às conseqüências que o autor postula, por mais que o réu seja “prestativo”. Se esta ação é fruto das denúncias promovidas pelo Tacom com intenção de tirar os réus do mercado é tese que nenhuma prova sustenta. O segundo réu apenas alegou isso, mas não ofertou qualquer prova. Chamado a indicar suas provas, silenciou, nada requere. É da jurisprudência: “Em virtude da preclusão que se opera, não cabe falar em cerceamento de defesa quando a parte, intimada para especificar as provas que pretendia produzir, permanece em silêncio ou não postula outras provas, dando margem a julgamento antecipado da lide. Isso porque eventual requerimento de provas na inicial deve ser reiterado no prazo aberto pelo juiz para tanto, considerando-se o silêncio ou a ausência de reiteração como desistência da fase probatória ” .“Como é certo, o momento próprio para que a parte decline as provas que pretende produzir é o da petição inicial ou da contestação. Por vezes, porém, após a fase postulatória, pode a parte entender desnecessária a produção de provas outras e, a partir daí, pugnar pelo julgamento antecipado da lide, como forma de abreviar a solução da causa. Tendo em vista essa possibilidade, nas ações que versam sobre direitos disponíveis, é praxe que os juízes determinem as partes que especifiquem as provas que pretendem produzir, isto de modo a dar algum subsídio a sua decisão no sentido de julgar o processo antecipadamente, naturalmente, em vista dos requisitos legais (CPC, art. 330) ou promover o seu saneamento, determinando a produção das provas requeridas. No caso dos autos, a inércia da parte autora em responder ao despacho que determinou a especificação de provas implicou em tácita concordância com o julgamento antecipado e desistência em relação às provas pedidas na inicial” . “A inércia da parte em responder ao despacho que determinou a especificação de provas implica em tácita concordância com o julgamento antecipado e desistência em relação às provas pedidas na inicial. Cerceamento de defesa inexistente. Precedentes da corte. [...] Neste particular, cumpre anotar que não constitui função do juiz determinar a produção de prova de interesse de uma das partes quando ela não requerer expressamente. A regra prevista no art. 130 da Lei Processual apenas faculta ao juiz a requisição de prova que entenda pertinente à formação do seu convencimento. Estando este convencimento devidamente embasado, não tem o juiz qualquer obrigação de determinar a produção de provas outras. Pelo contrário, neste caso, tem o dever de julgar o feito no estado em que se encontra, com vistas a tornar mais célere a prestação jurisdicional”. “Tendo sido ofertado ensejo a especificação de provas e permanecendo inerte a parte em relação a tanto, não ocorre cerceamento de defesa, uma vez que precluso o direito a prática do ato” . “No processo civil, a falta de requerimento de alguma prova quando da especificação de provas, faz precluir a matéria, não gerando cerceamento de defesa” . “Não basta o simples protesto genérico por provas na inicial, as quais devem ser reiteradas por ocasião do despacho que determina a especificação das mesmas, precluindo o direito da parte na prática do ato processual, quando intimada para tanto, queda-se silente” . As condutas praticadas e confessadas pelos três réus desrespeitaram reiteradamente o CDC. Os réus violaram o dever de informação aos consumidores, porque os enganavam abertamente apresentando-se como autoridades judiciárias, para compeli-los a pagar ou firmar acordos. Os consumidores eram levados a comparecer a reuniões de cobrança, camufladas sob o título pomposo de audiências, privados da informação sobre a verdadeira natureza do ato, sobre a facultatividade da conciliação e da instituição da arbitragem, sobre o direito de escolher e recusar o árbitro, sobre o direito à defesa. Agindo assim, os réus, como fornecedores que eram dos serviços de cobrança, faltaram ao dever de boa-fé. Os arts. 4º III e 6º III do CDC restaram violados. Depois, os réus, fingindo serem tribunais e juizados, apresentando seus atos como se fossem judiciais e seus prepostos como se fossem autoridades, montaram uma farsa para ludibriar tanto seus clientes quanto os consumidores cobrados. Eram empresas de cobrança, de atuação agressiva, funcionando sob disfarce de justiça alternativa. Montaram publicidade, impressos e discurso público simulando tratarem-se de órgãos judiciais. Eram uma contrafação da Justiça, feita para extorquir dinheiro de ingênuos. Praticaram abertamente a cobrança abusiva de dívidas, proscrita pelo CDC, abusando da vulnerabilidade do consumidor. E o fizeram vilipendiando a Lei Federal nº 9307, da qual ofenderam a letra e o espírito, negando aos consumidores os direitos contemplados nos arts. 2º § 1º e § 2º e art. 6º da citada lei. Não havia, na atuação dos réus, nem sombra da imparcialidade que a lei exige dos árbitros: eram empresas de cobrança travestidas de tribunais, comprometidas até a alma exclusivamente com os interesses dos seus clientes-credores, em cujo favor unicamente agiam. Assim agindo, desrespeitaram a função social da pessoa jurídica, lesaram consumidores e ultrajaram instituições beneméritas como o Judiciário, a conciliação, a arbitragem, a pacificação alternativa dos conflitos. Fatos como os aqui examinados contribuem para desmoralizar perante a sociedade tais instituições, que o vulgo acaba por confundir, por obra de tratantes como os réus, com gente da laia destes. Procede, assim, o pedido inicial. Isso posto, confirmo a antecipação da tutela jurisdicional antes deferida e julgo procedente o pedido inicial, e por isso: a) decreto a extinção das pessoas jurídicas rés; b) declaro nulos todas as conciliações presididas e todos os laudos arbitrais emitidos pelos réus; e c) condeno os réus a custearem, por duas vezes, a publicação desta sentença em jornal local de grande circulação. Condeno ainda os réus ao pagamento das custas e despesas processuais, e honorários advocatícios que arbitro em dez mil reais, considerando o alto zelo do procurador da parte adversa, o fato de serem os serviços profissionais prestados no foro da sede da advocacia daquele, a relativa simplicidade da causa, e a abreviação do trabalho pelo julgamento antecipado. Os honorários advocatícios são devidos na forma da Lei Estadual n. 12241, de 1998, e Constituição do Estado do Paraná, art. 118 II.P., r. e i..
Maringá, 15 de abril de 2009.
Alberto Marques dos Santos
Juiz de Direito