Oligarquia e presidencialismo de coalizão
Por RUDÁ RICCI
Um artigo escrito por Carlos Alberto Di Franco, intitulado “Simbiose - oligarquia e populismo”, motivou esta reflexão sobre o quanto o presidencialismo de coalizão montado pelo lulismo confere uma sobrevida (e enquadra) às oligarquias e coronelismos regionais. Di Franco recupera a avaliação do sociólogo Leôncio Martins Rodrigues para quem a multiplicação de escândalos não punidos é fruto da aliança entre os grupos de Lula e de Sarney. Na verdade, trata-se de um preço pago pelo lulismo pelo apoio que Sarney deu ao Presidente Lula durante o auge da denúncia do esquema que ficou conhecido como mensalão. Para Leôncio, “o líder das oligarquias tradicionais do Nordeste junta-se ao líder das novas classes ascendentes” e, ainda, “a união foi possível por que os “novos” aderiram rapidamente ao projeto dos “velhos”, de fazer da política uma escada para obter proveitos pessoais, enriquecimento e desfrute puro e simples do poder. É algo de fato original. Entre nós, a ascensão dos plebeus não significou a expulsão dos velhos oligarcas. Eles se entenderam, chegamos aonde chegamos.”
Di Franco parece acertar o alvo quando afirma, em seu artigo, que o
“presidente da República, invariavelmente, sai em defesa daqueles que compõem o seu cinturão de proteção”. Mas, a partir daí, perde o prumo porque parte para uma análise personalista, fulanizando a política. Reafirma a tese da oposição para quem o lulismo seria leniente. Perde, assim, a chance de aprofundar a análise sobre a lógica da Corte brasileira, dos acordos entre forças que corroem qualquer inovação política em nosso país.
O fato é que o lulismo tem na coalizão presidencialista uma de suas pedras fundamentais, nascida do pragmatismo sindical. Uma coalizão que fez da partilha de cargos públicos uma blindagem que praticamente inviabilizou qualquer discurso hegemônico da oposição. Mas como qualquer coalizão vitoriosa em nosso país depende do partido “omnibus” que responde pela sigla PMDB, esta opção vai tomando rumos imprevistos. Lembremos, apenas, que o conceito de partido “omnibus” foi criado por Fernando Henrique Cardoso para nomear os partidos que têm como intenção reunir várias doutrinas e ideologias para atingirem o objetivo comum, no caso, a manutenção de seu poder de influência direta junto ao poder executivo (em todos seus três níveis). O poder do PMDB reside em sua expressiva força parlamentar e no número de prefeitos e vereadores. Significa dizer que é um partido que se acomoda à peculiaridade das culturas locais, territoriais. Em algumas localidades, possui lideranças mais populistas; em outros, mais conservadoras; em outras, ainda, detentoras de discursos éticos e moralistas. Mais à esquerda ou mais à direita, é o protótipo da acomodação e do pragmatismo. É aí que se casa com o lulismo.
Assim, a coalizão presidencialista, ao mesmo tempo em que confere um imenso poder ao lulismo, possibilita o fortalecimento de lideranças regionais, que se portam como porta-vozes das decisões federais, já que participam direta ou indiretamente de ministérios e fóruns de decisões do governo federal. E, assim, alimenta indiretamente as oligarquias regionais. Como contingência, não como intenção, já que a coalizão envolve muitas tonalidades ideológicas.
O que há de interessante nesta equação é a criação de um sistema de lealdades que garantem autonomia ideológica (ou programática) à cúpula do governo federal, como se as lideranças regionais incorporadas à coalizão de governo tolerassem as identidades programáticas do lulismo desde que pudessem exercer seu poder ao longo do território nacional. Uma situação muito parecida com o que a literatura dedicada ao estudo do sindicalismo rural brasileiro denominou de “Complexo Contag”. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) é a maior confederação de trabalhadores do Brasil. A partir do final dos anos 60, em plena ditadura militar, foi retomada por lideranças nordestinas próximas ao PCB, mas que fizeram composições com outras forças políticas ao sul do país. Nos anos 70, o núcleo central da CONTAG forjou uma fortíssima coalizão de gestão, envolvendo federações estaduais e sindicatos (STRs). Também incorporou em seu corpo de assessores técnicos e lideranças oriundas do PCB e MR8. Na prática, um conflito local era prontamente atendido por advogados e técnicos das federações e mesmo da CONTAG. Um dirigente estadual ou local envolvido com este sistema de lealdades recebia, em época de eleição das direções sindicais, apoio das instâncias superiores e vice-versa. Uma trama complexa porque não era raro que numa localidade surgisse uma oposição sindical ideologicamente próxima da direção da CONTAG mas que não recebia qualquer apoio da direção da confederação justamente porque não fazia parte do sistema de lealdades que sustentava todas direções. Tempos depois, era possível perceber que este sistema transformou-se numa articulação de cúpulas dirigentes, com pouca possibilidade de participação direta da base sindical no processo decisório. O único momento de participação foram os congressos nacionais da CONTAG, um evento, não um processo de gestão política.
A coalizão presidencialista lulista possui este signo. Não interfere (ou interfere raramente) nas disputas regionais. Procura limitar a força de seu próprio partido onde lideranças de partidos que fazem parte da coalizão têm relevância eleitoral. Em troca, ganha liberdade programática, tendo utilizado como moeda cargos e ministérios. Como se oferecesse anéis para preservar os dedos. Uma troca política nítida, definida, que se esboçou com mais clareza quando do ingresso do PMDB no governo Lula. Por este motivo, é fundamental que se entenda que o PMDB tem responsabilidade central na conformação final do lulismo. Até então, o lulismo ainda era depositário de certa lógica petista, onde o partido liderava (ou subjugava) com mão de ferro outros aliados (daí o mensalão). A partir da entrada do PMDB no governo federal, desenhou-se a coalizão presidencialista lulista com todas suas cores. Os dirigentes do PT que operavam os bastidores dos acordos entre partidos da base governista se retraíram às disputas internas. O núcleo gestor do lulismo passou a receber um salvo conduto da cúpula de todos partidos de sua base política, incluindo o seu próprio partido.
Depois de Getúlio Vargas, o lulismo se constrói como modelo de gestão política mais fiel ao maquiavelismo. Soube aliar a administração da Corte com a relação direta com as massas populares. Conduz uma política de Estado no fio da navalha desta relação. Daí a contradição entre análises que o consideram populista e as que o consideram refém das oligarquias (ou ele próprio uma oligarquia). O populismo ignora as instituições e, em especial, as estruturas de mediação na representação política (sindicatos, por exemplo). As oligarquias, por seu turno, limitam a estrutura de poder a poucos expoentes, às elites econômicas e políticas tradicionais. O lulismo não trabalha em nenhuma dessas formas políticas. Antes, as redefine. Enquadra esses extremos num sistema de lealdades absolutamente pragmático. Não se trata de uma mera ascensão política de um segmento social, da elite sindical cutista (como sugere Leôncio Martins Rodrigues). Esta, talvez, fosse uma evidência na primeira gestão Lula. Mas a partir da coalizão com o PMDB, forjou-se o lulismo, uma expressão política muito mais complexa que mero acordo entre elites.
Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. E-MAIL: ruda@inet.com.br . SITE: www.cultiva.org.br . Blog: rudaricci.blogspot.com
Um artigo escrito por Carlos Alberto Di Franco, intitulado “Simbiose - oligarquia e populismo”, motivou esta reflexão sobre o quanto o presidencialismo de coalizão montado pelo lulismo confere uma sobrevida (e enquadra) às oligarquias e coronelismos regionais. Di Franco recupera a avaliação do sociólogo Leôncio Martins Rodrigues para quem a multiplicação de escândalos não punidos é fruto da aliança entre os grupos de Lula e de Sarney. Na verdade, trata-se de um preço pago pelo lulismo pelo apoio que Sarney deu ao Presidente Lula durante o auge da denúncia do esquema que ficou conhecido como mensalão. Para Leôncio, “o líder das oligarquias tradicionais do Nordeste junta-se ao líder das novas classes ascendentes” e, ainda, “a união foi possível por que os “novos” aderiram rapidamente ao projeto dos “velhos”, de fazer da política uma escada para obter proveitos pessoais, enriquecimento e desfrute puro e simples do poder. É algo de fato original. Entre nós, a ascensão dos plebeus não significou a expulsão dos velhos oligarcas. Eles se entenderam, chegamos aonde chegamos.”
Di Franco parece acertar o alvo quando afirma, em seu artigo, que o
“presidente da República, invariavelmente, sai em defesa daqueles que compõem o seu cinturão de proteção”. Mas, a partir daí, perde o prumo porque parte para uma análise personalista, fulanizando a política. Reafirma a tese da oposição para quem o lulismo seria leniente. Perde, assim, a chance de aprofundar a análise sobre a lógica da Corte brasileira, dos acordos entre forças que corroem qualquer inovação política em nosso país.
O fato é que o lulismo tem na coalizão presidencialista uma de suas pedras fundamentais, nascida do pragmatismo sindical. Uma coalizão que fez da partilha de cargos públicos uma blindagem que praticamente inviabilizou qualquer discurso hegemônico da oposição. Mas como qualquer coalizão vitoriosa em nosso país depende do partido “omnibus” que responde pela sigla PMDB, esta opção vai tomando rumos imprevistos. Lembremos, apenas, que o conceito de partido “omnibus” foi criado por Fernando Henrique Cardoso para nomear os partidos que têm como intenção reunir várias doutrinas e ideologias para atingirem o objetivo comum, no caso, a manutenção de seu poder de influência direta junto ao poder executivo (em todos seus três níveis). O poder do PMDB reside em sua expressiva força parlamentar e no número de prefeitos e vereadores. Significa dizer que é um partido que se acomoda à peculiaridade das culturas locais, territoriais. Em algumas localidades, possui lideranças mais populistas; em outros, mais conservadoras; em outras, ainda, detentoras de discursos éticos e moralistas. Mais à esquerda ou mais à direita, é o protótipo da acomodação e do pragmatismo. É aí que se casa com o lulismo.
Assim, a coalizão presidencialista, ao mesmo tempo em que confere um imenso poder ao lulismo, possibilita o fortalecimento de lideranças regionais, que se portam como porta-vozes das decisões federais, já que participam direta ou indiretamente de ministérios e fóruns de decisões do governo federal. E, assim, alimenta indiretamente as oligarquias regionais. Como contingência, não como intenção, já que a coalizão envolve muitas tonalidades ideológicas.
O que há de interessante nesta equação é a criação de um sistema de lealdades que garantem autonomia ideológica (ou programática) à cúpula do governo federal, como se as lideranças regionais incorporadas à coalizão de governo tolerassem as identidades programáticas do lulismo desde que pudessem exercer seu poder ao longo do território nacional. Uma situação muito parecida com o que a literatura dedicada ao estudo do sindicalismo rural brasileiro denominou de “Complexo Contag”. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) é a maior confederação de trabalhadores do Brasil. A partir do final dos anos 60, em plena ditadura militar, foi retomada por lideranças nordestinas próximas ao PCB, mas que fizeram composições com outras forças políticas ao sul do país. Nos anos 70, o núcleo central da CONTAG forjou uma fortíssima coalizão de gestão, envolvendo federações estaduais e sindicatos (STRs). Também incorporou em seu corpo de assessores técnicos e lideranças oriundas do PCB e MR8. Na prática, um conflito local era prontamente atendido por advogados e técnicos das federações e mesmo da CONTAG. Um dirigente estadual ou local envolvido com este sistema de lealdades recebia, em época de eleição das direções sindicais, apoio das instâncias superiores e vice-versa. Uma trama complexa porque não era raro que numa localidade surgisse uma oposição sindical ideologicamente próxima da direção da CONTAG mas que não recebia qualquer apoio da direção da confederação justamente porque não fazia parte do sistema de lealdades que sustentava todas direções. Tempos depois, era possível perceber que este sistema transformou-se numa articulação de cúpulas dirigentes, com pouca possibilidade de participação direta da base sindical no processo decisório. O único momento de participação foram os congressos nacionais da CONTAG, um evento, não um processo de gestão política.
A coalizão presidencialista lulista possui este signo. Não interfere (ou interfere raramente) nas disputas regionais. Procura limitar a força de seu próprio partido onde lideranças de partidos que fazem parte da coalizão têm relevância eleitoral. Em troca, ganha liberdade programática, tendo utilizado como moeda cargos e ministérios. Como se oferecesse anéis para preservar os dedos. Uma troca política nítida, definida, que se esboçou com mais clareza quando do ingresso do PMDB no governo Lula. Por este motivo, é fundamental que se entenda que o PMDB tem responsabilidade central na conformação final do lulismo. Até então, o lulismo ainda era depositário de certa lógica petista, onde o partido liderava (ou subjugava) com mão de ferro outros aliados (daí o mensalão). A partir da entrada do PMDB no governo federal, desenhou-se a coalizão presidencialista lulista com todas suas cores. Os dirigentes do PT que operavam os bastidores dos acordos entre partidos da base governista se retraíram às disputas internas. O núcleo gestor do lulismo passou a receber um salvo conduto da cúpula de todos partidos de sua base política, incluindo o seu próprio partido.
Depois de Getúlio Vargas, o lulismo se constrói como modelo de gestão política mais fiel ao maquiavelismo. Soube aliar a administração da Corte com a relação direta com as massas populares. Conduz uma política de Estado no fio da navalha desta relação. Daí a contradição entre análises que o consideram populista e as que o consideram refém das oligarquias (ou ele próprio uma oligarquia). O populismo ignora as instituições e, em especial, as estruturas de mediação na representação política (sindicatos, por exemplo). As oligarquias, por seu turno, limitam a estrutura de poder a poucos expoentes, às elites econômicas e políticas tradicionais. O lulismo não trabalha em nenhuma dessas formas políticas. Antes, as redefine. Enquadra esses extremos num sistema de lealdades absolutamente pragmático. Não se trata de uma mera ascensão política de um segmento social, da elite sindical cutista (como sugere Leôncio Martins Rodrigues). Esta, talvez, fosse uma evidência na primeira gestão Lula. Mas a partir da coalizão com o PMDB, forjou-se o lulismo, uma expressão política muito mais complexa que mero acordo entre elites.
Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. E-MAIL: ruda@inet.com.br . SITE: www.cultiva.org.br . Blog: rudaricci.blogspot.com
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