27.9.09

Marina e a nova utopia

Por RUDÁ RICCI

1.    A utopia de mediadores da ação social
Marina Silva, o PV e parte da grande imprensa nacional percebem que sua candidatura presidencial acolhe o que denominam de “nova utopia”. De fato, desde a ECO-92, realizada no Rio de Janeiro, o conceito de desenvolvimento sustentável define um novo parâmetro de organização social e econômica, que se opõe ao mero produtivismo e defende a preservação, o uso racional dos recursos naturais, o respeito às culturas locais e a participação na gestão pública. Vale destacar que os dois últimos itens não são muito conhecidos do grande público, mas estão nítidos na declaração da ONU e na Agenda 21.
Por aí, nasce o questionamento se Marina Silva não retomaria, em novas bases, o que Lula representou como depositário da utopia social nos anos 80.
O que pretendo argumentar é que a “maldição do PT” (termo empregado para jocosamente destacar que lideranças petistas que se desfiliam do partido caem rapidamente no ostracismo) continua criando suas vítimas e que dificilmente a utopia que Marina carrega será popular em curto prazo. Sua chance estaria, pelo contrário, se justamente deslocasse sua novidade para a tradição e carisma, ou seja, se diminuir o foco na sustentabilidade e aumentar o outro lado de seu perfil, a faceta mística e religiosa que cria uma aura de respeito e certa veneração à sua pessoa. Aliás, não é uma mera coincidência que sua figura alie mística e sustentabilidade, como tentarei argumentar mais adiante.
Marina é uma dessas personalidades, como foi o candidato Obama, cuja apropriação pública de sua mensagem vai além da própria mensagem. Marina é menos uma pessoa e mais uma bandeira, uma persona, não por seu próprio esforço, mas porque sua discrição abriu a possibilidade do silêncio pessoal ser preenchido pela interpretação que muitos fizeram de sua imagem. Em outras palavras, Marina fala pausadamente, pensa antes de falar, se recolhe no silêncio quando contrariada, tem um ritmo e certo mistério das florestas. Seu silêncio é interpretado, por vezes, e ocupado por outras vozes. Além disto, as florestas são prenhas de mitos. E os mitos amazônicos são dos mais enigmáticos. O livro de Milton Hatoum de 2008, “Órfãos do Eldorado”, retrata um desses mitos e possivelmente nos ajuda a compreender como Marina se faz e se movimenta. Hatoum retoma o mito amazônico da Cidade Encantada, através do qual muitos nativos e ribeirinhos acreditam que no fundo de um rio ou lago existe uma cidade rica, explêndida, exemplo de harmonia e justiça social. As pessoas comuns seriam seduzidas e levadas para o fundo do rio por seres das águas ou da floresta e só voltam ao mundo com a intermediação de um pajé.
O discurso de Marina se aproxima de uma lógica mítica do mundo. Quase sempre conta a história de um ciclo que está se fechando, mas que a grande maioria da população não percebe. Um discurso tipicamente utópico que se reporta ao momento atual como doente, mas que para a grande massa é o cotidiano em que vivemos (não morremos). O momento atual, para os mortais, é o da sobrevivência ou até da oportunidade de maior consumo na medida em que a ascensão social parece ter chegado aos rincões do país.  E como todo discurso mítico, que se desdobra em ciclos de vida e morte, o de Marina sugere retirar os seres do fundo da lagoa.
O impasse que fica é que este discurso é de difícil objetivação no dia-a-dia do brasileiro. Principalmente para os que saíram da pobreza e ingressaram na lógica da nova classe média.
Aqui a candidatura Marina Silva representaria uma nova utopia, mas que possui um apelo muito distinto da que Lula representou, certo dia. Os movimentos sociais dos anos 80, dos quais Lula foi depositário por algum tempo, tinham como foco a crítica profunda à institucionalidade pública. Recolocava o plano político a partir dos marginalizados (em todos sentidos). A utopia carregada por Lula foi a do grito dos excluídos, mas rapidamente evoluiu para a ascensão dos excluídos. Foi aí que o discurso mítico e místico se perdeu. Lula deu uma guinada do discurso carismático para o pragmatismo que fazem da alma do brasileiro algo tão peculiar, tão difícil de ser compreendido por europeus e norte-americanos. A utopia carregada por Lula é a da inserção no consumo, que por tanto tempo o Presidente da República denominou de dignidade. Foi o tempo da garantia do café da manhã, almoço e janta, mas que agora é a do consumo de achocolatado, como já se constatou neste ano que ingressou na cesta básica das classes D e E. Com o bolsa-cultura, o vale de 50 reais, será a utopia de assistir cinema e teatro. A construção do Estado de Bem-Estar Social tupiquim e, como aquele, da dependência social em relação aos governos federais. Porque o lado pouco recomendável do Estado de Bem-Estar Social é este caráter de Providência, paternal, de “estatalização” da sociedade civil. Aliás, ao ingressar neste campo, Lula abandonou de vez o discurso da participação social na gestão pública que marcou os movimentos sociais dos anos 80.
Mas Marina retoma parte da velha utopia de Lula e a reveste. E, por este motivo, é respeitada. Porque, mesmo jovem, parece carregar a distinção dos sábios, corretos, quase lineares, lentos, cujo tempo parece próprio, o tempo das certezas, longe da velocidade da aceitação fácil, da busca da popularidade. Marina fala do futuro, a partir da valorização do passado. Condena o presente, como quase todo discurso mítico. E, por este motivo, faz de seu discurso a pedra de toque das lideranças intermediárias, dos mediadores da ação social. Mas não da grande massa dos brasileiros que se sentem, pela primeira vez na história de suas famílias, incluídos no mundo do consumo moderno.
Falta sociologia ao forte discurso religioso e antropológico de Marina.

2.    A Sustentabilidade poderá mover os filhos da nova classe média
Não que o discurso do desenvolvimento sustentável seja inviável socialmente. Mas é um discurso do futuro. Será, talvez, a utopia dos filhos da nova classe média, aquela que já terá rompido definitivamente com a história de pobreza de seus antecedentes.
É um discurso que já envolve intelectuais, militantes ambientalistas, grande parte das organizações de agricultores familiares, o que hoje se denomina agrupamentos sociais tradicionais (como quilombolas e nações indígenas), militantes de comitês de bacias hidrográficas, agentes sociais e pastorais intermediários. São mediadores, em sua maioria, que intepretam a realidade. Não são necessariamente lideranças sociais, mas mediadores que ficam no fio da navalha entre o mundo concreto daqueles que assistem e a construção de projetos alternativos de organização social, nem sempre vislumbrados com nitidez pelos que assistem.
Já tivemos um exemplo muito recente da força social do discurso da sustentabilidade em nosso país. Foi na 4ª Semana Social Brasileira, liderada pelos agentes pastorais, fortemente enraizados em comunidades cristãs. A 4ª Semana Social Brasileira recebeu a chancela da CNBB e da Assembleia Popular da Campanha Jubileu Sul/ Brasil. Foi realizada durante a crise aberta pelo mensalão e, por este motivo, esteve fortemente influenciada por esta pauta. Articulada por eventos de reflexão sobre uma agenda nacional, incentivou a “reflexão crítica sobre a prática do poder político e o poder do povo de intervir na transformação do País.”  Irmã Delci, da Pastoral Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e da Coordenação Nacional da Assembléia Popular afirmava: “A decisão partiu da realidade brasileira que estamos vivendo hoje. Queremos mostrar ao mundo político que a sociedade civil tem algo a dizer. Por isso essa assembléia é feita em mutirão, construída conjuntamente”.
Entre os dias 17 a 19 de novembro de 2006, o Seminário conclusivo da 4ª Semana Social Brasileira, encerrou um processo de discussão que durou três anos. Participaram representantes de todos os Estados do País, de Pastorais e de Movimentos Sociais e de outras entidades que aderiram a esta iniciativa da CNBB. A proposta da Semana foi suscitar um Mutirão por um Novo Brasil, apostando na articulação das forças sociais para a construção do país que queremos, fundado nos seguintes objetivos metodológicos:

•    Apostar no processo da Assembléia Popular – Mutirão por um novo Brasil, como instrumento dinamizador de causas comuns a serem assumidas em conjunto, em âmbito nacional, regional e local;
•    Fortalecer os fóruns que aglutinam pastorais ou movimentos afins;
•    Trabalhar em redes, socializando causas, metodologias ou iniciativas;
•    Valorizar a comunicação alternativa para diminuir a influência negativa dos grandes meios de comunicação;
•    Dar atenção a todo tipo de novos atores sociais que vão surgindo;
•    Fortalecer a Formação dos atores sociais, os participantes se propõem:
•    Empreender um esforço especial de levar às bases os temas debatidos em nível nacional ou regional;
•    Apostar na formação de novas lideranças;
•    Dar atenção especial para as juventudes urbanas;
•    Incentivar escolas de formação política, com metodologia popular, abertas à participação de todos;
•    Socializar experiências positivas.

Alguns objetivos, como se percebe nas entrelinhas, revelam algum esgotamento da pujança de novas lideranças que emergiram das mobilizações dos anos 80. Não por outro motivo que há tantos itens voltados para formação e organização de novas lideranças e a preocupação central com a influência dos meios de comunicação.
A agenda de mobilizações destacava:

•    O plebiscito para anulação do leilão da Vale do Rio Doce;
•    As campanhas nacionais (Campanha da Fraternidade, Campanha pela Auditoria Cidadã da Dívida, Campanha para redução das tarifas de energia elétrica e pela criação de outras fontes renováveis de energia, Campanha contra o rebaixamento da idade penal, Campanha de valorização do salário mínimo e contra o modelo neoliberal (maio 2007),
•    Campanha da Marcha das Mulheres (8 de março).

Quais desses objetivos e agenda de lutas foram alcançadas? Quais causaram impacto social real? Quantas mentes e corações foram tocados por elas?
O comunicado final foi ainda mais longe. Sugeriu que este Mutirão por um novo Brasil deveria se pautar pela construção de um sistema político em que se exerça a democracia direta através de plebiscitos, referendos, iniciativas populares de leis, orçamento participativo e com a cidadania controlando o Estado; que recupere o sentido primordial da terra com sua destinação universal como patrimônio comum da humanidade, respeite o meio ambiente e a biodiversidade, faça a Reforma Agrária e a regularização fundiária das comunidades tradicionais e garanta a soberania alimentar. E, ainda mais inovador, organizou uma agenda de desenvolvimento nacional a partir dos biomas macroregionais do Brasil.
Fui um dos assessores nacionais da 4ª Semana Social e confesso que fiquei entusiasmado com esta nova leitura do país através dos seus biomas, incluindo desenvolvimento dos Cerrados, da Amazônia, do Pantanal, da Caatinga, da Mata Atlântica e do Pampa. Ali estava plasmado o efetivo olhar do desenvolvimento sustentável do país. Um olhar que organizava e articulava o país continental com os territórios forjados nas microbacias.
Mas logo percebi que este ainda é o olhar rural, mítico, da utopia rural. Que encanta, mas não organiza efetivamente. E que encanta mediadores, mas não a grande massa de desejosos pela inclusão no mundo moderno. Mesmo porque a inclusão no mundo moderno cria distância em relação ao mundo e as utopias rurais. O velho divórcio de um país que já nasceu esquizofrênico, entre querer ser europeu e ser indígena e africano.
Enfim, Marina carrega uma nova utopia. Mas é mais elitizada que a que Lula carregou. E Lula carregou a utopia que encarnou na institucionalidade pública que durante tanto tempo criticou acidamente. Inclusive que a denunciou como amarrada aos 300 picaretas.
 Marina tem esta ligação com a utopia rural e com os anos 80. Atrai quem viveu estas possibilidades que se chocam frontalmente com o ideário tucano e até mesmo com o pragmatismo lulista. E que, infelizmente, temo que também se choquem com a nova classe média brasileira, a maioria dos brasileiros, também pragmática e que por isto se identifica com Lula.

(*) Sociólogo, doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. E-MAIL: ruda@inet.com.br . SITE: www.cultiva.org.br . Blog: rudaricci.blogspot.com