26.10.09

Celibato no século XXI?

Por RUDÁ RICCI

Padre anglicano casado recebe as bênçãos do Papa

O Papa anunciou, na semana passada, que padres casados da Igreja Episcopal Anglicana poderão fazer parte de sua estrutura organizacional. Abriu a senha para que a discussão que até agora não era tocada em público se tornar um tema geral, de católicos ou não. O documento referência tem nome: Constituição Apostólica, que libera padres anglicanos e seminaristas. Estima-se que contemplará ao redor de 500 mil anglicanos (menos de 10% do total de devotos anglicanos). Não se trata da primeira lufada inovadora dos anglicanos; em 2003, Gene Robinson foi nomeado bispo em New Hampshire (EUA). Robinson é assumidamente gay. E inovam ainda mais: apóiam uso de métodos de controle da natalidade e defendem pesquisas com células-tronco. A base do discurso é a defesa da vida, afirmam seus líderes e fiéis.
É verdade que os anglicanos nasceram (no século XVI) sob o signo da pressão do movimento protestante. Seus fiéis não são obrigados a seguir as decisões do seu líder, o arcebispo de Canterbury, suas lideranças são eleitas, aceitam o divórcio. Mas esta é a ponta do iceberg.
Participei, recentemente, de um debate na televisão em que discutíamos a função social do padre, durante a semana em que a Igreja Católica homenageia seus sacerdotes. O psicólogo William Castilho Pereira me acompanhou nesta empreitada. E apresentou um argumento dos mais polêmicos e urgentes para a Igreja Católica: o padre estaria preparado para suportar o que na psicanálise denomina-se de transferência? Ele insistia que como psicólogo trabalhou e se preparou anos a fio para saber lidar com turbulências emocionais daqueles que o procuram. Na caminhada pela busca da paz interior, o analisado chega a odiar e, não raro, se apaixonar pelo profissional que o atende. E o padre? Teria preparo profissional para esta tentação?
Obviamente que sua pergunta foi uma dentre tantas que ficou no ar. Eu mesmo insisti qual a função simbólica do celibato nos dias atuais. Séculos atrás, poderia criar a aura de santidade, de sofrimento voluntário. Teria forte apelo no mundo medieval, onde o trabalho e tudo o que cercava a vida material afastaria o fiel do contato com Deus. Daí Papas e Reis (além de toda Corte) desprezarem o trabalho manual, o esforço físico, o cansaço e o suor, que lembravam o lado biológico, material e animal do ser humano. Não ter gula, não desejar, não rir, não casar aproximariam o que é matéria do espírito. Um aspecto que perpassa várias culturas religiosas. Foi a redenção de Siddharta. Os quatro sinais, que o levaram a ser Buda, são todos recheados pela provação da dor e sofrimento (a velhice, a doença, a morte, e a transcendência da matéria ao se identificar com a entrega dos monges).  O jejum extremo e o despojamento absoluto aparecem como marcas da santidade e aproximação do cosmos divino.
Mas, depois de Freud, não temos mais direito a tal ingenuidade. Não somos livres nem em sonho, já que até ali o desejo nos espreita. O desejo despertado durante o dia e reprimido; os estímulos biológicos involuntários que persistem ao sono; o desejo alojado no inconsciente.
Se a santidade pelo sofrimento é algo tão secundário nos dias atuais para que uma pessoa tenha fé, qual o motivo para esta luta diária de um padre contra seus desejos, procurando sublimar diariamente todos desejos, indistintamente? O que nos garante que muito do que parece sublimação não alojaria neuroses que explodem em manchetes de jornais nos últimos tempos?

Uma breve leitura sociológica da passagem do carisma para o discurso racional da Igreja

Toda instituição possui um discurso fundacional, baseado num mito heróico ou de abnegação. Os fundadores aparecem como seres superiores, focados num fim nobre, conferindo um espelho comportamental para seus seguidores. Não necessariamente como algo a ser atingido, mas como exemplo que nos revela o quanto somos insignificantes e como tudo o que fazemos é ainda pouco.
No caso das igrejas, o mito é ainda mais essencial porque nascem do carisma, o toque ou escolha de Deus. São graças do Espírito Santo. O documento Mutuae Relationes definiu pela primeira vez o carisma. Em determinada passagem destaca o carisma especial: “os que são chamados à vida contemplativa especificamente são reconhecidos como um dos tesouros mais importantes da Igreja. Graças a um carisma especial, escolheram a melhor parte, isto é, a oração, o silêncio, a contemplação, o amor exclusivo a Deus e a dedicação total a seu serviço...”
Como o carisma é uma escolha pessoal, mas também externa e superior, aquele que é tocado transforma-se em elo entre o mundo concreto e o sentido superior da vida. Por este motivo, imagina-se, o padre quando prega não fala em seu nome, mas entrega-se como instrumento de Deus. Assim se realiza o carisma. Para nos lembrar (a nós, seguidores não tocados diretamente) que a vida religiosa se distingue da vida comum, mundana.
As igrejas nascem desta mística e da objetivação do carisma, de uma dimensão distante do mundo concreto. Dela nasce uma das características mais importantes da espiritualidade: a transubstanciação ou transmaterialização. A fé objetivaria algo que não é material. Ao morder a hóstia consagrada, aquele que tem fé pode sentir uma profunda angústia por ter cometido um sacrilégio. A hóstia, no caso, assim como a Palavra de Deus dita pelo padre ou pastor, ganha uma dimensão não material, invisível, mas que define sentimentos e situações concretos. Este é o mito fundante de todas religiões. Mas ao se organizar num corpo de condutas e valores, tal mito (ou pensamento místico e mítico) desloca-se para a tradição.
A Igreja Católica, neste sentido, nasce do carisma e da mística, mas também se alimenta de rituais e tradições que fazem as vezes de lembrança da origem.
Finalmente, ao erigir uma estrutura hierárquica, ao transmutar as tradições em normas e regras, ao constituir estruturas de poder materiais e simbólicas, a Igreja fez-se burocracia.
Em termos weberianos, trata-se de uma estrutura que congrega todas formas de dominação legítima: a tradicional, a carismática e a legal-racional.
É neste ponto que podemos compreender o trânsito do discurso católico oficial: da racionalidade à tradição; da tradição ao místico. Se não transita nestas três dimensões, destrói seu passado e presente e dilui seu poder e sua legitimação.
Daí o irracional caminhar lado a lado com a racionalidade mais impessoal. A questão sociológica em pauta, contudo, é compreender como um ser humano, definido pela administração e realização de pulsões, pode transitar por tais dimensões. Em outras palavras, como é possível fazer-se santo e sublimar pulsões num mundo em que não estes não são valores que legitimam a liderança espiritual ou religiosa? E, pior: em que escândalos escancaram a sexualidade que antes teria sido parcialmente extirpada como caminho de contato com Deus, como revelação do carisma?
Enfim, o Papa concede uma ponte histórica, de aggiornamento da Igreja como instituição a partir da releitura de seus dogmas. Uma passagem do mundo místico para o mundo da razão humana, da legitimação medieval para a legitimação pós-moderna. E, talvez, da ética como valor fundador da mística. Por mais conflitante quer pareça.

(*) Sociólogo, doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. E-MAIL: ruda@inet.com.br . SITE: www.cultiva.org.br . Blog: rudaricci.blogspot.com