14.1.10

Ação civil pública - Valter Bessani

Processo nº 0207/2005 (ação civil pública)
Ministério Público do Estado do Paraná vs. Valter Gonçalves Bessani
Sentença - É obviamente ímprobo o ato do prefeito que contrata professora para servir ao município sem prévio concurso público.
Alega a inicial, em síntese, o seguinte: a) entre 1997 e 2000 o réu era prefeito de Doutor Camargo; b) nessa qualidade, e desrespeitando vários princípios constitucionais, em 14/4/98 deliberadamente contratou Márcia Cristina Zaupa Moretti para trabalhar para o município, como professora, sem concurso público; c) com isso praticou ato de improbidade descrito no art. 10 caput da Lei de Improbidade (Lei Federal nº 8429, de 1992). Pediu a condenação do réu na penas do art. 12 II da Lei de Improbidade (Lei Federal nº 8429, de 1992), e a condenação do réu nos encargos da sucumbência. A inicial foi recebida a f.313, com rejeição de preliminares. Não houve recurso.Citado, o réu contestou, alegando, em suma, que: a) a contratação de Márcia não causou prejuízo ao município, porque ela efetivamente trabalhou, merecendo os salários percebidos; b) sem lesão ao erário não há ato ímprobo; c) o réu não agiu de má-fé, pois um mês após a contratação de Márcia ela prestou concurso para o cargo, e o réu não sabia que ela não obtivera classificação nesse certame; d) houve mero equívoco, posto que Márcia foi contratada para trabalhar para a APMI, e por falha do departamento pessoal foi erroneamente registrada como servidora do município; e) o valor percebido por Márcia, atualizado, soma apenas R$ 7.223,19, e não R$ 27.790,17 como quer o autor. Postulou a extinção do processo ou a improcedência do pedido inicial, e a condenação do autor nos encargos da sucumbência. A parte autora manifestou-se sobre a contestação, reiterando os argumentos da inicial. A preliminar argüida na contestação foi rejeitada (f.348), não houve recurso. Foi colhida prova oral. Os memoriais reiteram as teses já resumidas. É o relatório.
Os fatos narrados na inicial, e que fundamentam a pretensão, são incontroversos: o réu admite que Márcia foi contratada pelo município, para trabalhar como professora, sem concurso. Depois que já estava trabalhando nessa condição foi que prestou o concurso. Não foi aprovada, mas continuou ainda assim trabalhando para o município, contratada sem concurso. A ilicitude dessa situação é tão evidente que dispensa maiores divagações. O art. 37 II da Constituição da República exige a prévia aprovação em concurso público como requisito para investidura em cargo público. O cargo de professor não se enquadra em nenhuma das exceções constitucionais a essa regra geral. Se fosse, e não é, um daqueles cargos que admite contratação por tempo determinado sem concurso, a legalidade da investidura dependeria de prévia aprovação em teste seletivo (art. 27 IX da Constituição do Estado). Márcia nem prestou concurso nem se submeteu a teste seletivo: como afirmou categoricamente em seu depoimento de f.361, simplesmente foi ao gabinete do réu-prefeito, pediu o emprego de professora, foi contratada sem qualquer outra exigência, encaminhada diretamente à secretaria de recursos humanos, onde apresentou seus documentos, foi registrada como servidora do município e começou a dar aulas na escola municipal. Simples assim, como se o município fosse a fazenda do prefeito, como se a escola municipal fosse a cozinha da casa do réu, como se o dinheiro público fosse dinheiro particular dele, ou como se ele, em vez de prefeito, fosse rei de Doutor Camargo. A improbidade da situação é de tal modo clamorosa que o réu apela para desculpas estapafúrdias. Diz, p.ex., que Márcia foi contratada pela APMI, e registrada por engano como funcionária do município. Ocorre que Márcia afirmou que foi contratada pelo prefeito em pessoa, e dali encaminhada por ele para a secretaria de educação, que a encaminhou para o setor de recursos humanos da prefeitura. Em momento algum a encaminharam para a APMI. Ora, município e APMI são pessoas jurídicas distintas. O prefeito não era presidente da APMI, e portanto não tinha qualidade para fazer contratações em nome desta. Só falava em nome do município, e se foi ele quem contratou Márcia, como ela confirma, então a contratou para servir ao município. Ademais, ela foi contratada para dar aula em escola municipal. As escolas são repartições do município, não têm qualquer vínculo com a APMI, e não faz parte das funções e missões da APMI proporcionar educação formal a crianças: isso é atribuição do município. Por fim, a APMI tinha sua sede e sua contabilidade, e o município tinha as dele, diversas, distintas, e não faz nenhum sentido a teoria mirabolante de que o mesmo setor e a mesma pessoa faziam documentação contábil/trabalhista de ambas as entidades. Supondo, por fim, que fosse pelo menos possível essa risível tese do erro no preenchimento dos documentos de admissão, o erro teria sido percebido ao fim do primeiro mês, posto que, não sendo Márcia funcionária do município, mas da APMI, como diz o réu, o município não a remuneraria. Mas todos sabem que não foi isso que ocorreu: tanto ela era funcionária do município que este pagou pontualmente os salários. Se Márcia prestou os serviços esperados, e o fez bem, é de todo irrelevante. A norma constitucional que condiciona a investidura em cargo público à prévia aprovação em concurso não visa garantir a qualidade e continuidade dos serviços públicos, mas garantir que os cargos públicos não serão usados como moeda eleitoral para premiar apaniguados, como fez o réu. A norma do art. 37 II foi instituída para impedir que tiranetes descarados sem vocação democrática nem pudor usem o poder obtido nas urnas para dar emprego a seus cupinchas, em vez de distribuir os cargos públicos aos mais merecedores, como faria um gestor probo. Ainda mais desrespeitosa é a tese que confessa que só um mês após sua contratação Márcia prestou concurso para o cargo. Ora, se isso ocorreu, como o réu confessa, é porque ele e ela sabiam, como todo mundo sabe, que a contratação sem concurso era ilegal. Logo, o concurso serviria para remendar o ato ímprobo, caso Márcia lograsse aprovação, coisa que não conseguiu. Dizer o réu que agiu sem má-fé porque “não sabia” que ela reprovara no concurso é desfaçatez. Agiu com má-fé ao contratá-la sem primeiro certificar-se de que fora previamente aprovada num concurso público, coisa que qualquer administrador público honrado faria. Quanto à tese de que os fatos em exame não causaram dano, o que, segundo o réu, impediria a aplicação das sanções da Lei Federal nº 8429, anote-se que o STJ entende o contrário: “Para a configuração do ato de improbidade não se exige que tenha havido dano ou prejuízo material, restando alcançados os danos imateriais” (Recurso Especial nº 287728/SP (2000/0118835-6), 2ª Turma do STJ, Rel. Min. Eliana Calmon. j. 02.09.2004, unânime, DJ 17.12.2004). No mesmo sentido a jurisprudência de grau inferior: “Ação civil pública. Lei de improbidade administrativa. Irregularidades contidas no caput do art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa. [...] Pedido do réu de afastamento da pena de multa por não ter havido dano ao erário. Impossibilidade. Aplicação de sanções que independem de dano patrimonial” (Apelação Cível nº 1.0095.04.910502-6/001, 8ª Câmara Cível do TJMG, Cabo Verde, Rel. Roney Oliveira. j. 01.09.2005, unânime, Publ. 11.11.2005).“Ação civil pública. Improbidade administrativa. Desvio de recursos públicos. Entidade beneficente. Violação ao princípio da legalidade. [...] O art. 21, inciso, I da Lei nº 8.429/92 estatui que a aplicação das sanções previstas independe da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público. Os comportamentos que atentarem contra os princípios da Administração Pública merecem também ser punidos” (Apelação Cível nº 1.0479.00.014302-0/001, 7ª Câmara Cível do TJMG, Passos, Rel. Alvim Soares. j. 17.02.2004, unânime, Publ. 20.05.2004).O ato do réu, pois, foi típico para o art. 10 IX e simultaneamente para o art. 11 I da Lei de Improbidade (Lei Federal nº 8429, de 1992), que reza:“art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente: [...] IX - ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento; [...] Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, e notadamente: [...] I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência; ”Por isso, está o réu sujeito às penas do art. 12 da mesma lei.
Isso posto, julgo procedente o pedido inicial, e condeno o réu às seguintes sanções: a) ressarcimento integral do dano, conforme se apurar em liquidação de sentença; b) perda da função pública, se a exerce; c) suspensão dos direitos políticos de por cinco anos; d) pagamento de multa civil de valor igual ao do dano que for apurado em liquidação de sentença; e) proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos. Condeno ainda o réu ao pagamento das custas e despesas processuais, e honorários advocatícios (Lei Estadual nº 12241, de 1998, e Constituição do Estado do Paraná, art. 118 II) que arbitro em 15% do valor das condenações pecuniárias impostas, considerando o alto zelo do procurador da parte adversa, o fato de serem os serviços profissionais prestados no foro da sede da advocacia daquele, a relativa simplicidade da causa, e a necessidade de coleta de provas em audiência.P., r. e i..
Maringá, 14 de dezembro de 2009.

Alberto Marques dos Santos
Juiz de Direito